Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Branca Como a Neve (2019): Branca de Neve nos dias atuais

Versão atualizada da história da branca de neve apresentada neste drama misturado com comédia entrega uma narrativa que falha em pontos chave, apesar de apresentar bons aspectos técnicos.

Apesar de estarmos acompanhando uma produção cada vez maior de live-actions de animações com as princesas da Disney, adaptações que se passam nos dias de hoje ainda não são muitas. Algumas como “A Nova Cinderela” e “A Fera” seguem as versões modernas de Cinderela e Bela ainda adolescentes, assim como nas histórias originais. “Encantada” a série “Once Upon a Time” trazem princesas para o mundo atual num contexto mais adulto. E, agora, a obra francesa “Branca Como a Neve”, adaptação da história da Branca de Neve dos Irmãos Grimm, entra neste grupo.

Aqui, seguimos Claire (Lou de Laâge), uma mulher que trabalha no hotel de seu falecido pai junto com sua madrasta, Maud (Isabelle Huppert). Maud descobre que seu atual namorado tem interesse em Claire e tenta se livrar dela. Quando o plano dá errado, Claire se encontra na casa de Pierre (François Bonnard) em uma pequena vila, onde se sente livre para ser ela mesma e decide ficar. Nessa adaptação, Claire só vive de fato com 3 homens, enquanto os outros “anões” são representados por personagens que moram na mesma vila e cruzam seu caminho.

A história da Branca de Neve é bastante complicada de encaixar-se em uma adaptação que se passe nos dias de hoje: uma mulher sozinha que decide viver com homens desconhecidos no meio de uma floresta não é exatamente um conceito muito cabível na época atual. Por mais que todos que assistam ao filme estejam cientes da adaptação, é necessário que a narrativa faça sentido dentro do nosso contexto atual, ponto que infelizmente não encontra muito êxito.

O roteiro apresenta uma Claire tomando decisões que nem sempre são coerentes com as situações onde ela se encontra. Ao invés de ficar com medo de Pierre, que age de maneira grosseira com ela desde o momento em que os dois se conhecem, Claire pede para ficar quando ele a expulsa, sem qualquer interação anterior entre eles que construísse algum vínculo minimamente positivo. Enquanto ela fica na casa que Pierre divide com François, seu irmão gêmeo, e Vincent (Vincent Macaigne), a relação de Claire com os dois primeiros não é aprofundada. Em certo momento da narrativa eles começam a sumir da tela. Um dos poucos relacionamentos que é explorado com mais detalhes é entre Claire e Vincent, que formam entre si um laço de amizade.

Em certo diálogo com Vincent, Claire explica que perdeu a mãe aos 13 anos, e desde então se sente como uma “página em branco”. E de certa forma, parece que esse diálogo foi inserido para explicar a sua falta de personalidade e desenvolvimento dentro da história: ela não parece abalada com o fato de que tentaram matá-la, não tenta acionar a polícia ou mostra interesse em voltar para a cidade, e aceita ficar em um lugar que não conhece, arrumando até mesmo um emprego rapidamente. Ela também explica que lá se sente livre, porém não sabemos detalhes da sua vida antes de tal mudança acontecer, o que torna difícil de entender o porquê da personagem estar sentindo libertação em uma situação bastante estranha, que normalmente causaria o efeito contrário na maioria das pessoas. A narrativa poderia, também, ter aprofundado um pouco mais a relação entre Maud e Claire, para que a dinâmica entre as duas e as motivações de Maud ficassem mais claras.

Dá para sentir que a intenção da história dirigida por Anne Fontaine (que também escreveu o roteiro, junto com Pascal Bonitzer e com colaboração de Claire Barré) era mostrar uma protagonista sexualmente livre e sem pudores. Claire tem vários encontros sexuais durante o filme, o que não é, por si só, um problema. Dá para ver a tentativa de construir a imagem de uma mulher forte, que faz o que quer (pensando também no fato de que o argumento foi construído por duas mulheres, e as duas personagens principais também são do sexo feminino). Mas a mensagem final não fica estabelecida dessa forma, especialmente pela maneira como cenas e personagens são construídos. Muitos dos encontros românticos de Claire parecem acontecer apenas para a história andar, sem ter muito embasamento por trás.

Apesar dos problemas narrativos, o filme consegue construir um ritmo estável e não cansa a audiência. Tanto Laâge quando Huppert apresentam ótimas atuações, e trabalham muito bem juntas. A cinematografia de Yves Angelo e a trilha sonora de Bruno Coulais ajudam a trazer um tom mais místico para a obra, fazendo referência à origem da história com uso forte dos tons de vermelho e composições que poderiam facilmente estar presentes em uma fantasia, todos integrados de forma orgânica na história.

“Branca Como a Neve”, como um todo, parece uma junção de pequenos curtas: cada um mostrando um pouco das relações que Claire cria com os homens que cruzam seu caminho, sem a presença de uma narrativa mais forte que servisse de link entre eles. Faltou um pouco de coerência na hora de amarrar o roteiro, mas valeu a tentativa.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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