Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Eu Te Amo, Agora Morra – O Caso de Michelle Carter (HBO, 2019): crimes virtuais

Poderoso e extremamente relevante, o documentário informa acerca dos perigos existentes no mundo virtual ao mesmo tempo em que desafia o espectador a ir além de devastadores simplismos gerados pelo uso irresponsável das redes sociais.

A democratização dos aparelhos tecnológicos revolucionou a maneira de se comunicar. Munida de dados móveis e redes sociais, a humanidade encontrou nos celulares uma inmensurável plataforma para o compartilhamento imediato de recados e informações capaz de alcançar em poucos segundos habitantes dos diferentes cantos do planeta. Tais transformações, encabeçadas por gigantes da informática como o Google e a Apple, trouxeram incontáveis evoluções sociais, conquistas que não só facilitaram a obtenção de conhecimento, por exemplo, como também expandiram as modalidades de convivência humana. No complexo universo das relações virtuais, entretanto, nem tudo é um mar de rosas, sendo o documentário “Eu Te Amo, Agora Morra – O Caso de Michelle Carter” um urgente lembrete do lado obscuro existente na internet.

Em 2017, a norte-americana Michelle Carter foi levada a julgamento após o suicídio de seu namorado, Conrad Roy. Acusada de homícidio culposo, a jovem de 17 anos havia instruído cautelosamente o que o rapaz deveria fazer para tirar a própria vida, conforme revelaram assustadoras mensagens eletrônicas encontradas pela polícia. Chocante, o acontecimento agitou a mídia e gerou diversos debates acerca do impacto causado pelo que é dito online, questões fundamentais que levaram a diretora Erin Lee Carr  (“No Coração do Ouro – O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica“) a escolher o cinema como forma de resposta para uma inquietante pergunta: palavras podem matar? Polêmico, temos aí um tema que exige bastante responsabilidade em seu tratamento, cuidado este que, felizmente, a documentarista demonstra ter de sobra.

Habilidosa, Carr investe na construção de diferentes visões acerca da horrenda morte, avançando de forma inteligente e bastante análoga ao seu evidente discurso contra simplismos. Ao dividir a produção em duas partes bem notáveis, ela consegue transmitir com clareza os principais lados do caso, usando depoimentos, audiências jurídicas e, principalmente, a densa conversa entre os membros do fatídico casal, como componentes de seu fio condutor. Dessa forma, reúne ferramentas para o desenvolvimento de um documentário justo (mesmo que consideravelmente parcial, característica típica de obras do gênero) e bastante profundo, trabalhando com dinamismo vários aspectos importantes em uma época na qual o acesso à tecnologia é cada vez mais precoce. Dois destes tópicos, todavia, se destacam em meio aos demais.

Primeiramente, são nítidos e extremamente pertinentes os inúmeros alertas que a diretora coloca em relação ao caráter substitutivo das correspondências à distância. Fisicamente afastados, não são poucos os adolescentes que entendem a web como um facilitador à manutenção de relacionamentos, priorizando as amizades feitas através de computadores em detrimento do contato com amigos e familiares próximos. Somado à falta de controle sobre o que é consumido na net, esse tipo de comportamento pode ter resultados devastadores, conforme exemplifica a triste história de Roy e Carter. Lidando com uma forte depressão (doença cada vez mais frequente entre os mais novos), Conrad raramente dialogava com seus pais sobre suas grandes dificuldades, tendo em Michelle uma confidente para seus impulsos suicidas. Igualmente instável, todavia, não cabia a ela, obviamente, ser a única responsável por fornecer ajuda e apoio motivacional distante dos pais e de colegas (era extremamente sozinha em sua escola) com os quais pudesse desabafar a respeito da tóxica situação.

Em segundo lugar, é bastante marcante a forma como Carr denuncia as análises simplistas que muitos disseminam pela internet. Exibindo diversas vezes as mensagens trocadas entre os namorados (evidências visuais que não fazem jus à complexa situação por trás das mesmas), ela critica fortemente a superficialidade e precipitação com as quais é explorado o meio virtual, por vezes geradas pela falta de vontade em ir além das manchetes voltadas a determinados assuntos. Uma vez que aquelas primeiras eclodiram nas redes sociais, muitos “intelectuais de Facebook” não tardaram em classificar Carter, de forma extremamente maniqueísta, como uma vilã doentia, ignorando, por exemplo, as agressões físicas que Conrad recebia de seu pai, ou a já há muito existente tendência ao suicídio, como outras possíveis motivações para sua morte. Atrelada a isso, existe também uma ácida crítica à espetacularização de certos eventos por parte da mídia (com exceção de um entrevistado em particular, um jornalista que contribui com várias interpretações interessantes), por vezes mais preocupada com a atração de espectadores do que com a conscientização dos mesmos.

Seria injusto inferir, além disso, que a diretora visa, com garras e dentes, justificar as atitudes de Michelle Carter (pensamento que deve ser natural nas mentes de uma parcela da plateia). Ela explora as mais diversas perspectivas, considerando, inclusive, a visão de que a jovem teria sido movida por um instinto maldoso e egocêntrico, buscando atenção na compaixão que viria após a morte de seu “amado”. Isso sem considerar, também, que deixa claro que seu interesse não está em condenar ou diminuir a culpa da garota, mas sim em transmitir uma importante lição voltada ao uso indevido da tecnologia, através da história de uma paixão que logo se tornou uma bomba relógio. Em alguns momentos, no entanto, o foco exagerado em Carter acaba diminuindo o tratamento que a verdadeira vítima tanto merecia.

Forte e intensamente relevante, “Eu Te Amo, Agora Morra – O Caso de Michelle Carter” é uma mensagem obrigatória para uma juventude cada vez mais inseparável das telas tecnológicas. Desafiador, o documentário convida o espectador a um uso mais consciente das redes sociais, bem como educa a respeito dos perigos causados pelo isolamento e pelos simplismos disseminados virtualmente.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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