Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O Homem Ideal? (2017): uma adaptação que funciona, muito bem

Uma comédia teatral agridoce sobre um romântico anti-herói na busca por um amor, com roteiro inteligente e encadeado, excelentes atores e uma direção dinâmica.

Com Carlos Alberola (que também interpreta o papel principal), um diretor estreante no cinema, mas com mais de 30 anos de experiência no teatro, “O Homem Ideal?” surge originalmente como peça. Essa raiz fica clara durante sua metamorfose para o cinema de maneira brilhante. O filme tem um ar de cult e de nicho, mas apesar de sua complexidade é desenvolvido de forma leve e clara, fazendo com o que o espectador entenda o que está acontecendo e acompanhe com os personagens.

Rúbens (Carlos Alberola)  é o protagonista que foge do esperado. Ele é a perfeita figura anti-heróica: professor de filosofia de uns 50 anos, desajustado, feio (como ele mesmo se denomina no início do filme) e desengonçado, beirando o patético, porém, consegue conquistar o público. O casal Raquel (Cristina García) e Jaume (Alfred Picó) muito bem casados (pelo menos é a imagem inicial passada), despertam quase uma inveja branca nele, tentam marcar um encontro às cegas com uma mulher para o amigo, que está divorciado há quase 2 anos, sozinho e deprimido.

Após vários furos de “candidatas”, Pilar (Rebeca Valls) é a que comparece, com segundas intenções. Ela é jovem, bela, de personalidade complexa e compartilha do gosto literário de Rúbens, que se rende aos seus encantos. Entretanto, nem tudo é um conto de fadas: ela foi amante de Jaume e é irmã de Raquel (que tem uma “paixonite” pelo amigo). Com todos esses elementos dividindo espaço num apartamento, o resultado não poderia ser diferente de tensões, desastres e emaranhados que só aumentam entre os quatro. Isso tudo é captado pela câmera como se nós estivéssemos imersos e acompanhando ali dentro da sala do protagonista tudo o que está ocorrendo. À exceção dos primeiros dez minutos, todo o resto se passa dentro do apartamento e em tempo “real” (não há saltos de tempo). Esse tipo de narrativa tem sido uma tendência em filmes europeus independentes, pois são mais fáceis de produzir (poucas locações, figurinos, dias de gravação, atores…) e consequentemente um orçamento pequeno.

A dinâmica de cena é incrível e cria um ritmo muito agradável, que faz com que o espectador não perca o foco em nenhum minuto do filme. Fica bem claro a influência teatral, mas sem ser caricatural, tanto na atuação que tem um tom de tragicomédia grega, como nas próprias saídas e entradas dos atores, que são típicas das que ocorrem nas coxias (laterais do palco do teatro por onde geralmente o personagem entra e sai). Um elemento que chama a atenção é a escolha de manter os atores originais da peça, que funcionou muito bem. Outro ponto de destaque é a manutenção do idioma original, o valenciano, valorizando a cultura local. A escolha mais fácil teria sido o espanhol, para um apelo universal, mas da forma que foi feito deu um charme a mais na obra e nos faz questionar onde se passa e cria um misticismo sobre o lugar.

Durante o desenvolver da história, percebemos mais um “personagem”: o apartamento. Ele “respira” junto de cada cena, sendo importante para resolver ou em alguns casos, criar conflitos. É notável o trabalho de cenografia que conseguiu dar personalidade e funcionalidade, como é na origem da obra. Inclusive, há uma homenagem e é usado um elemento que estava presente no primeiro formato de palco: um chamativo jogo de jantar vermelho, que mais uma vez não está ali à toa e gera um diálogo. Essa é a premissa de todos os setores da obra, que reforçam a “Lei da Necessidade da Dramaturgia” (que diz que algo só está presente em cena porque é necessário). Nada é por acaso.

Infelizmente, um erro foi o do título em português, que é genérico e sem personalidade, pois não traduz a beleza da obra e nem causa interesse em assistir. Muito melhor seria uma tradução mais próxima do original: “M’esperaràs?” (“Espera por mim?”, em tradução livre). Rubéns está bem longe de ser “o homem ideal” e é esse o charme. Ele é um homem real, com fraquezas, medos e defeitos. Ele nos ensina a esperar quando algo é realmente importante, nada mais importa e o tempo é relativo.

Com um desfecho que satisfaz, mas não é óbvio nem “happy ending”, pode-se dizer que é um longa com belo trabalho de roteiro e atuação sublime, que merece ser visto e revisto em diversas situações por variados públicos. O certo é que todos serão tocados de alguma maneira, ainda que de forma não ideal.

Maduda Freitas
@MadudaFreitas

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