Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Pássaros de Verão (2018): o fim da tradição

Drama colombiano baseado em fatos reais mostra ascensão e queda de uma família indígena que se envolve no tráfico de drogas, numa trama que entrega tudo que promete.

Em “Pássaros de Verão”, acompanhamos a história do clã Pushaina, pertencente ao povo indígena Wayuu, durante a “bonança da maconha” retratada no filme entre os anos de 1968 até 1980. Baseado em fatos, vemos como uma forma de negócios que estava em ascensão acabou com uma cultura a qual se baseava em misticismo e valores familiares.

Após entregar os dotes necessários, Rapayet (José Acosta) se casa com Zaida (Natalia Reyes), filha da matriarca Úrsula (Carminã Martínez). Rapayet é humilde e não faz parte da tribo de Zaida, fazendo com que sua mãe desaprove a união apesar de aceitar o casamento. A partir disso, observamos como no início do seu relacionamento ele aceita as regras impostas pela aldeia, ficando nítido que nem sempre as entende ou concorda. Para os Wayuu, a família deve ser a maior prioridade do seu povo. O personagem de Acosta começa a desrespeitar essa tradição quando ganha mais dinheiro e notoriedade com o tráfico, mostrando que tem outros objetivos, algo que leva a família a ir perdendo aos poucos suas conexões entre si e com o resto da aldeia.

Um dos maiores feitos de “Pássaros de Verão” são suas atuações: todos os atores entregam performances primorosas, fazendo o espectador sentir que está, de fato, assistindo o dia a dia daquelas pessoas, e que elas são seres humanos reais, não apenas personagens de uma história. Algo que não seria possível se o roteiro fosse falho, mas o texto de Maria Camila Arias (“Candelaria”) e Jacques Toulemonde (“O Abraço da Serpente”) é muito bem construído e consegue deixar o espectador vidrado nas reviravoltas da história durante as duas horas de filme. Uma das partes mais interessantes da narrativa é acompanhar as tradições do povo Wayuu, que fogem totalmente do que estamos acostumados na sociedade urbana. Algumas delas sendo moças que ficam confinadas durante um ano para após esse período serem apresentadas como mulheres para a aldeia, mulheres que não podem ser tocadas durante o enterro de seus familiares, entre várias outras.

O filme dialoga com a nossa realidade por retratar uma das formas pelas quais os indígenas perderam seus costumes em prol da forma de vida do “mundo civilizado”. Infelizmente, ainda é um tema bastante relevante e atual, principalmente no nosso país, e a narrativa nos apresenta de maneira sutil como cada vez que a família vai se afastando mais dos costumes e pessoas da aldeia, mais infortúnios recaem sobre eles. Vemos as consequências no modo que a família de Rapayet se sente cada vez menos pertencentes aos ambientes e situações onde se encontram, por mais que tentem fazer de tudo para mostrar que merecem estar ali.

A personagem que mais traduz esse sentimento é Úrsula, e através do seu ponto de vista acompanhamos como cada geração de sua família dá menos valor aos costumes pelos quais ela tanto preza, e como é dolorido para ela acompanhar essa mudança dentro do seu próprio clã. Nas tradições do seu povo, as mulheres carregam em si um grande respeito e poder por serem aquelas que conseguem ver e interpretar sonhos, reconhecer sinais de perigo ao seguir seus instintos, entre tantos outros hábitos. Úrsula passa por dificuldades ao perceber que no mundo patriarcal que sua família está adentrando, as palavras e experiências de uma mulher tem pouca para nenhuma importância.

Não é apenas seu clã que sofre com essas mudanças, e também diversos outros que sempre foram próximos, porém com o tráfico começaram a ficar em lados opostos, colocando seus negócios ilícitos acima do companheirismo que lhes acompanhavam há décadas. O próprio Rapayet, que discorda da sogra em vários aspectos, é retratado em cenas bastante delicadas como um homem que apesar de aproveitar todos os luxos da vida nova, sente uma falta visceral do lugar de onde veio. Esse tipo de história já foi contada em diversos outros filmes que falam de máfia e como ela estraga tudo por onde passa, mas não da forma mística e sensível que os diretores Christina Gallego, na sua estreia, e Ciro Guerra (“O Abraço da Serpente”) decidiram direcionar a narrativa, baseada no folclore do povo Wayuu.

A cinematografia de David Gallego lembra muito seu trabalho em “Eu Não Sou Uma Bruxa”, com o mesmo ótimo uso de grandes planos abertos para mostrar ao público os ambientes onde os personagens transitam. Tudo parece contribuir para a sensação de que estamos invadindo a privacidade daquelas pessoas ao observar suas ações: aqui, ele quase não utiliza closes, sem apelar para momentos dramáticos a partir da técnica. A trilha sonora de Leonardo Heiblum (“A Jaula de Ouro”) aparece em poucos momentos muito bem escolhidos, utilizando melodias que remetem às músicas da própria da tribo. Até a violência demonstrada no filme é bastante seca: não vemos os atos enquanto eles acontecem. Se alguém leva um tiro, o foco fica no atirador, fazendo a audiência ver apenas depois a consequência dos atos violentos.

A direção de Gallego e Guerra junta todos esses elementos de forma fantástica, criando uma verdadeira obra de arte.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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