Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 17 de agosto de 2019

Missão no Mar Vermelho (Netflix, 2019): parem de salvar a África

Uma versão excessivamente polida e pouco crível de uma narrativa dura em sua essência, o longa tem como único mérito as (poucas) semelhanças com a realidade.

Missão no Mar Vermelho” já diz a que veio nos primeiros minutos de filme, quando Ari, o misterioso protagonista israelense interpretado por Chris Evans (“Capitão América: Soldado Invernal”) aparece correndo em busca de salvar a vida de um jovem etíope, como se ele também dependesse desse grande gesto de altruísmo para viver a partir de então. A produção distribuída pela Netflix segue nesse ritmo – aproveitando, sempre que pode, a oportunidade de ter um Capitão América para chamar de seu –  para contar a versão de Gideon Raff (também escritor de “Homeland”) sobre a história real de um resgate extraordinário na década de 80. Nessa época, a Etiópia enfrentava um panorama de guerra civil, situação que gerava milhares de refugiados, se não de mortos. A solução encontrada no período para salvar a vida dessas pessoas foi inusitada: o serviço secreto de Israel comprou e gerenciou um hotel no Sudão como fachada para realizar o transporte seguro dos etíopes.

Assim, Raff, também incumbido de dirigir a obra, dispõe de muitos dos instrumentos de valor para realizar uma memorável cinebiografia: uma boa narrativa, atores consagrados e um forte teor emocional, posto que a questão dos refugiados, infelizmente, perdura atualíssima. E mesmo com tudo isso ele consegue falhar amargamente no que se propõe pela forma tosca que desenvolve um enredo, sob primeira análise, primoroso. O filme é genérico, reforça um ideal etnocentrista há muito desgastado – a questão do white savior (“branco salvador”)e pouco parece se esforçar para não cair em estereótipos, uma vez que desde o princípio os personagens principais são mostrados como heróis imaculados que largam todas as suas ocupações por vontade de fazer o bem.

Alías, o longa-metragem é tão preguiçoso que pouco ou nada se sabe sobre a vida anterior de qualquer um dos protagonistas ou sobre traços de suas personalidades, sendo omitidos, inclusive, os motivos pelos quais cada um fora cooptado para a missão. O máximo que o espectador fica sabendo é que Ari é um pai omisso, que Max (Alex Hassell, “Suburbicon”) atira bem e que Rachel (Haley Bennett, “A Garota no Trem”), além de ter servido como aeromoça, é extremamente sortuda por não ter sofrido nenhuma desventura sendo mulher em uma situação completamente desfavorável quanto ao preconceito. Diante de todas essas lacunas, o diretor-roteirista ainda achou plausível incutir (muitas) cenas de mergulho aquático, de bronzeamento dos hóspedes do suposto hotel, de dancinhas e momentos que não conduzem a narrativa para lugar algum, de forma que estariam justificados apenas para criar um tom cômico indevido – e quiçá desrespeitoso – numa história que por si só já tinha força para agradar sem esse tipo de artifício bobo.

No que concerne a aspectos técnicos, parece existir um esforço muito pífio da produção para sair do medíocre. A fotografia é mal explorada e cai no mesmo maniqueísmo do roteiro, com planos pouco variados, prioritariamente americanos ou abertos, e praticamente a mesma angulação mantida no decorrer do longa-metragem, mostrando sempre a submissão e a situação escatológica dos etíopes em contraste com a suposta força e benevolência dos personagens estrangeiros. A montagem também não favorece a obra, com sobreposição de sequências pouco coesas e sem foco narrativo, passando frequentemente a sensação de se estar assistindo à versão censurada de um filme na tradicional “Sessão da Tarde”, com pontos de virada entre atos comumente cortados por não se encaixarem com a classificação indicativa do horário de exibição.

O maior revés de “Missão no Mar Vermelho”, entretanto, não se dá em nada do que foi citado anteriormente, mas no fato de relegar (mais uma vez na indústria de cinema) os protagonistas da narrativa real ao papel de coadjuvantes ou de meros figurantes na representação audiovisual dessa biografia. A subserviência dos judeus etíopes retratados em tela chega a ser vergonhosa. Eles aparecem somente como massa de manobra para justificar o heroísmo dos outros e a necessidade de serem salvos, e sempre se apresentam passivos, como um verdadeiro rebanho sendo conduzido por algo que parece não entender.

Essa falta total de enfoque na realidade do que se passou, no desenrolar das figuras em fuga e na realização de um trabalho satisfatório quanto a retratar os conflitos diários vividos pelos resistentes, com todo o seu sofrimento e resiliência diante dessa situação, é um desserviço social enorme e uma irresponsabilidade histórica. Enquanto continuarem reproduzindo esse modelo de cinema genérico e inverossímil, o audiovisual vai prosseguir perpetuando preconceitos – sejam eles escancarados ou velados, por propagação de etnocentrismo ou por omissão de viés. Parem de salvar a África e deixem que ela se salve sozinha. Eles, decerto, têm seus próprios protagonistas e merecem a chance de contar a sua própria história.

Lígia Amora
@rapadura

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