Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Universo Anime (Netflix, 2019): propaganda enganosa

Netflix engana espectadores ao prometer um documentário sobre o significado de anime, mas entregando uma descarada propaganda de suas próprias obras.

“Você sabe o que é anime?”, indaga a sinopse de “Universo Anime”, documentário lançado pela Netflix em agosto de 2019. Pergunta interessante que pode atrair vários espectadores fãs do estilo para mergulhar numa obra carregada de pesquisa e análise. Caso esteja atrás desse tipo de filme, este não é para você.

A questão proposta como linha narrativa do documentário é sumariamente ignorada ao longo dos 58 minutos de duração, nunca tendo um resposta e jamais realmente discorrendo sobre o que o estilo representa em sua linguagem e seu significado para os mais variados fãs. Nada disso. A verdade é que o longa é uma descarada propaganda para os animes produzidos pela gigante do streaming.

A enganação é vergonhosa. A diretora Alex Burunova (“Pale Blue”) se mostra como alguém que não sabe nada de anime e quer entender as várias características que permeiam o estilo, analisando as diferentes maneiras em que ele conquista tantos fãs mundo afora. Balela. O que ocorre aqui são entrevistas terrivelmente editadas com produtores e diretores das animações japonesas produzidas pela Netflix, tudo intercalado por narrações em off de Burunova (na verdade, dublada pela atriz Tania Nolan) que são desconexas e chegam a parecer um vlog de viagens. Em certo momento, há até uma montagem com comidas típicas do Japão sem que nenhum tipo de conexão ou influência da culinária na indústria de animes seja sequer mencionada.

As entrevistas têm uma edição boba e sem sentido, com múltiplos cortes e efeitos de câmera e luz que não encaixam com nada em cena. A constante troca entre closes, telas divididas e textos que se destacam com efeitos especiais é nada além de bizarra, tendo até um momento em que alguém fala que é tímida, com o adjetivo aparecendo na tela com destaque e sons bruscos como se fosse o título de um anime cyberpunk carregado de ação. Um breve trecho que até funciona é quando finalmente o diretor Hiroyuki Seshita (“Godzilla: O Devorador de Planetas”) explica superficialmente como se cria um anime, mas perceba, essa é a PENÚLTIMA entrevista.

Uma das entrevistadas é Yoko Takahashi, cantora de vários temas de anime, inclusive da abertura de “Neon Genesis Evangelion”. Uma pessoa com profundo conhecimento do funcionamento da indústria desperdiçada numa entrevista com perguntas bobas e até uma cena em que o filme para a conversa para mostrar a intérprete tendo um pequeno diálogo no telefone com seu agente. Algo extremamente trivial que não traz nada de relevante. Conforme se assiste a obra, mais se percebe que Takahashi só foi entrevistada porque “Evangelion” se tornou parte do catálogo da Netflix.

Para uma obra que se propõe a analisar um estilo, ela descarta falar de qualquer figura importante na sua criação. Osamu Tezuka, apelidado por muitos como o “Deus do mangá”, não é sequer mencionado. Franquias de peso que ajudaram a globalizar animes como “Dragon Ball Z” e filmes que influenciaram pesadamente a cultura pop ocidental como “Akira” são ignorados. Há menções a “Ghost in the Shell”, não o original, mas a série vindoura que está sendo produzida, adivinhem só, pela Netflix.

O filme continua mal quando traz uma abordagem simplória e estúpida ao ter a diretora se indagando como uma cultura tão educada e tradicional como a japonesa consegue criar desenhos tão frenéticos e provocativos, ignorando a pluralidade da cultura do país e dos inúmeros gêneros produzidos em anime. Tal bobagem até poderia render se houvesse alguma tentativa de ilustrar como a cultura do Japão influencia as animações, mas isso seria uma obra com profundas pesquisas e análises, e aqui não há nada disso.

Há lampejos do que o documentário deveria ter sido em algumas entrevistas. Alguns depoimentos revelam a desumana jornada de trabalho, o que representava uma oportunidade de explorar o lado obscuro dessa indústria, que tem profissionais sofrendo de estresse crônico e cometendo suicídios. Porém, a conclusão que o filme traz é a de que eles são gênios porque tem ideias quando estão tomando banho. Ignorando que isso só deve acontecer porque é um dos raros momentos em que eles têm para si próprios e para seus cérebros descansarem, mas o longa prefere tratar isso como excentricidade dos artistas.

Até como propaganda a obra é ruim. Constantemente mostrando animes radicais com cenas de luta e uma edição que tenta pateticamente copiar esse estilo, há uma entrevista com os criadores do stop motion “Rillakuma e Kaoru”, que é altamente singelo e fofo. Essas cenas parecem deslocadas do resto da produção, que ainda comete gafes inacreditáveis, como dizer que o “personagem” favorito de um entrevistado é “Saint Seiya”, o que poderia até funcionar se estivessem falando do anime original de “Cavaleiros do Zodíaco”, onde eles eram realmente chamados de “saints”, mas como o foco era todo na série produzida pela Netflix, onde eles são chamados de “knights”, é apenas uma amostra da imprudência da obra.

Ao fim, o documentário, que não deveria se identificar como um, é uma descarada autopromoção dos animes produzidos pela Netflix, que inventa que a diretora quer descobrir o que é o gênero, mas nunca oferece algo que possa vagamente se passar por uma resposta. Confuso, com entrevistados que em sua maioria parecem ter sido escolhidos não para revelar intrigantes aspectos de suas obras, mas para soltar frases que as façam parecer interessantes para o público, e uma narrativa bizarra e desconexa por uma edição horrenda, “Universo Anime” é um gol contra da empresa de streaming, que engana o espectador ao iludi-lo com uma proposta e fazê-lo assistir a uma propaganda de uma hora de duração. Ela ainda tem a cara de pau de terminar com um letreiro que diz que todos os animes mostrados estão disponíveis. É ridículo, mal feito e de mal gosto.

Bruno Passos
@passosnerds

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