Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 17 de agosto de 2019

Mormaço (2018): um retrato do Rio de Janeiro em ruínas

Drama nacional aborda belamente o caos instaurado no Rio de Janeiro pela Olimpíada de 2016 e suas consequências para os moradores da cidade.

Em outubro de 2009, a população brasileira recebia uma notícia que seria uma das protagonistas da nossa história durante os sete anos posteriores a este momento: o Brasil, mais especificamente, o Rio de Janeiro, iria sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Com a promessa de que o evento traria para o país um grande reconhecimento internacional e que seria um ponto de partida para alavancar a infraestrutura da cidade, estádios foram reformados, o Parque Olímpico foi reestruturado e o centro histórico revitalizado. Tudo isso para proporcionar a melhor experiência possível para aqueles que iriam fazer parte do acontecimento. Porém, não tão distante disso tudo, bem no meio dos novos estádios e hotéis, transcorria uma realidade muito diferente: a Vila Autódromo, comunidade da zona oeste, entrava em guerra com a prefeitura. Localizada em um alvo de especulação imobiliária, os moradores da vila estavam sendo praticamente expulsos de suas casas. Sofrendo agressões psicológicas e físicas, eles estavam sendo obrigados a negociarem suas casas com os dirigentes da cidade. Entre as 600 famílias que moravam ali, somente 20 conseguiram manter suas residências, e a comunidade foi deixada em condições espantosas. É essa história que Marina Meliande (“A Alegria“), misturando ficção e documentário, contempla em seu primeiro longa-metragem solo, “Mormaço”.

Faltando alguns meses para o início das Olimpíadas, a defensora pública Ana (Marina Provenzzano, “A Frente Fria que a Chuva Traz”) trabalha para resguardar os moradores que desejam manter sua moradia e tenta suspender a ordem da prefeitura que permite que sejam retirados da vila – ordem que os gestores querem que seja concretizada independente de quais meios sejam necessários. Ao mesmo tempo, Ana também lida com o risco de perder seu próprio apartamento, que, assim como a Vila Autódromo, é um dos alvos da especulação imobiliária que aflige a cidade e está prestes a ser transformado em um hotel. Durante todo esse processo, a carioca começa a perceber manchas em sua pele. Quanto mais a situação das moradias é agravada, mais elas aumentam e consomem seu corpo.

Logo nos primeiros minutos, a audiência é proporcionada com uma paisagem que parece saída de uma obra neoclássica. Um dia ensolarado, em uma cachoeira, com Ana relaxadamente deitada em uma pedra, ignorando qualquer inquietação que poderia estar angustiando-a. É o bucólico, é a calmaria, é serenidade. O sossego de um cochilo depois do almoço em um domingo à tarde. Porém, apenas alguns segundos depois, nós somos extirpados dessa realidade. Com o barulho de uma sirene aguda e angustiante, somos transportados para o meio da cidade. É o oposto da calmaria da cachoeira. É a explosão – no filme, uma explosão literal -, é o caos, é a desordem. E é nesse momento que a percebemos que o grande protagonista da narrativa não é Ana e nem os moradores da vila. O grande protagonista é, na verdade, a cidade. É o Rio de Janeiro em um de seus momentos mais embaraçados.

Todo esse caos é perpassado de forma elogiável pela cinematografia, pela direção de arte e pela sonoplastia. A fotografia assinada por Glauco Firpo (“Tinta Bruta”) vai mudando durante o desdobrar do filme. De início, quando o foco da narrativa é mantido na parte documental do longa, o ambiente é iluminado e os tons terrosos predominam, proporcionando uma sensação constante de quentura e abafamento. É assim que conseguimos, praticamente, sentir o mormaço que origina o título. Em um segundo momento, quando o foco narrativo passa para a parte ficcional e fantástica, o ambiente vai escurecendo e os tons frios predominam, atestando toda a melancolia e esmorecimento ocasionado pelas mudanças na cidade. É nesse segundo momento que a direção de arte de Dina Salem Levy (“Benzinho”), ao lado do trabalho de maquiagem, mostra sua magnificência. Conforme a situação da cidade vai se agravando, a doença de Ana se intensifica e as manchas pretas em seu corpo se incorporam com as marcas que surgem na parede de seu apartamento, mostrando que, assim como sua casa (e a própria cidade), Ana está em ruínas, definhando, apodrecendo. Esse simbolismo é um dos aspectos mais admiráveis da obra, que ganha uma sensibilidade fascinante fazendo com que o sofrimento da protagonista seja quase palpável. Tais elementos ganham ainda mais notoriedade com a sonoplastia, que presenteia a audiência com barulhos estonteantes do ambiente, sendo possível ouvir desde os carros no trânsito e crianças brincando no meio da rua, até as gotas de água que escorrem do rosto de Ana. Assim, a impressão que fica nos espectadores é de estar, realmente, no Rio de Janeiro, como se pudéssemos até mesmo sentir o cheiro da cidade.

O grande pecado de “Mormaço” está nas atuações. Meliande opta por escalar para interpretar os habitantes da vila os próprios reais moradores, seguindo a linha documental da primeira parte do filme. Essa poderia ter sido uma escolha interessante, mas é na verdade o que tira boa parte da naturalidade das cenas protagonizadas por eles. Meliande falha em guiá-los em seus respectivos papéis, então acabam entregando uma atuação dura e fria demais, o que diverge da sensibilidade e delicadeza trazida pelos outros elementos da obra.

Problemas de elenco à parte, “Mormaço” se mostra como um filme necessário. Com aspectos técnicos invejáveis e um desenlace eletrizante, ele é um retrato forte, realista e sensível de um dos momentos mais caóticos da cidade carioca, que pode ser resumido em uma das falas mais contundentes de Ana: “e a cidade tá mudando a favor de quem?”

Ana B. Barros
@rapadura

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