Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Trocas Macabras (1993): o monstro sempre esteve aqui

Partindo de uma história de suspense com pitadas de sobrenatural, a adaptação aborda as fragilidades mais perigosas da humanidade.

Adaptações das obras literárias de Stephen King para os cinemas são muitas desde a década de 1970. Algumas investiram muito mais no terror e no gore existentes em algumas histórias, preterindo o que o autor também oferece em seus livros: os conflitos dramáticos dos personagens. O medo diante da morte, as relações entre pais e filhos, a importância da amizade, a marginalização social são temas evocados por suas criações. Um exemplo não tão comentado de filme que conseguiu captar essa essência é “Trocas Macabras“, mesmo sendo uma produção com deslizes e problemas.

Inspirado no romance homônimo escrito em 1991, a história se passa na tranquila cidade de Castle Rock, onde os moradores vivem da forma mais comum possível. A tranquilidade do local é desestabilizada com a chegada de Leland Gaunt (Max von Sydow, “O Exorcista“), que monta uma loja de antiguidades e interfere na dinâmica cotidiana oferecendo um objeto especial a cada cidadão em troca de um “favor” especial. O recém-chegado provoca brigas, sofrimento e mortes e desperta a atenção do xerife Alan Pangborn (Ed Harris, da série “Westworld“), o único que parece não ser afetado pela influência nociva do misterioso homem.

O roteiro estabelece claramente a responsabilidade discreta de Gaunt pelas tragédias que se abatem sobre a cidade, não precisando sujar as mãos para concretizar seus objetivos perversos. Ele manipula os moradores, aparentemente, de forma inofensiva propondo um pequeno favor para compensar o fato de que não possuem o dinheiro suficiente para adquirir os objetos que tanto querem. Tais pedidos se aproveitam dos preconceitos, ódios, ambições e fraquezas daquelas pessoas para alimentar os conflitos e gerar distúrbios crescentes. Quem antes era simplesmente funcionária do restaurante, fazendeiro local, padre, reverendo, policial, senador e outros tipos comuns de cidades pequenas se tornam figuras movidas pela violência e pela intolerância que mergulham Castle Rock no mais puro caos.

Percebe-se que o recém-chegado é um personagem maléfico interessado no mal que pode provocar, mesmo que sua real natureza não seja compreendida precocemente. Muitas pistas ajudam na construção da aura do personagem e revelam a gravidade de suas ações em uma escala crescente: a elaboração de uma lista com os nomes dos moradores sob o controle de Gaunt; os dentes apodrecidos e as unhas grandes e sujas que aparecem quando está sozinho; alguns momentos em que parece estar cercado por uma estranha névoa; a cena em que contempla animadamente as chamas da lareira; e os comentários irônicos sobre a religião católica, exemplificados pelas considerações feitas quando ouve uma interjeição usando os nomes de Deus ou Jesus. Outro recurso eficiente é a fotografia da maioria das sequências externas em que o homem aparece, alternando entre uma forte chuva e uma pesada neblina.

O enigmático sujeito se mostra ainda mais ameaçador quando comparado ao xerife Alan. Gaunt é interpretado por Max von Sydow como um indivíduo sedutor, culto, de fala muito bem articulada e manipulador, que consegue o quer sem chamar atenção para si mesmo (o figurino sombrio de terno e chapéu preto reforça uma caracterização perigosa de quem se mescla à escuridão). Já Alan é construído por Ed Harris como um oficial da justiça íntegro, apaixonado pela funcionária do restaurante e, principalmente, um outsider naquele ambiente por vir de fora e ser o único não afetado pelo recém-chegado apesar de suas emoções volúveis. Os demais atores atuam burocraticamente ou se aproximam do caricato. O que torna o quesito atuação realmente elogiável é graças aos nomes mais conhecidos do elenco.

Porém, o que mais se sobressai como problema da produção são os efeitos visuais datados e excessivamente artificiais surgidos quando os personagens tocam nos objetos da loja. Uma descarga de raios azulados percorre a pele dos clientes para ilustrar o vínculo que Gaunt consegue criar – um elemento fantástico que não dialoga bem com o estilo realista do resto da narrativa. Além desse problema relacionado aos efeitos, há também a aparição meramente ilustrativa de flashbacks ou desejos inconscientes dos personagem mostrando os motivos de desejarem aqueles objetos após sofrerem a descarga – a granulação diferente dessas imagens escancara didaticamente que a cena pertence a um tempo narrativo subjetivo, como se o espectador não pudesse notar a diferença.

Ainda assim, o filme possui outros méritos que se sintonizam à proposta de apresentar como cidadãos comuns guardam dentro de si forças maléficas. A trilha sonora é concebida com o objetivo de salientar a contradição entre um local aparentemente tranquilo de moradores supostamente pacíficos e a violência que pode ser desencadeada com a influência apropriada. Por exemplo, em uma sequência violenta ouve-se a canção “Ave Maria” e, em diversos momentos de ameaça, a trilha instrumental inclui um coro religioso de tom operístico nas notas. Inserir elementos religiosos não só atende à premissa da obra, como também cria uma série de provocações ao espectador.

É a partir do ideário religioso católico e dos procedimentos danosos de Leland Gaunt que “Trocas Macabras” indica como os monstros e o mal não precisam assumir uma forma inumana. O vilão é um sujeito supostamente comum e os atos de violência sempre são praticados pelos outros personagens devidamente manipulados para isso (de modo tão caótico que atacam pessoas que acreditam, enganosamente, terem algum ligação com o infortúnio sofrido). Pode não ser uma perspectiva completamente original e perfeita, porém uma obra que mostre como a humanidade pode carregar sua própria monstruosidade vale ser lembrada.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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