Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 13 de agosto de 2019

Uma Noite de 12 Anos (2018): sintam na própria carne

Concentrando-se nos horrores sofridos por José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández no cárcere, a produção ataca a violência da ditadura militar uruguaia.

“Ele conhece a sua sentença?”. “Não” – disse o oficial – “Ele sentirá na própria carne”. A abertura de “Uma Noite de 12 Anos” traz imediatamente a citação do escritor Franz Kafka como uma indicação clara do doloroso envolvimento emocional a ser construído pelo filme com os espectadores. As situações de extrema violência ocorridas durante a ditadura militar uruguaia no século passado são o eixo fundante para uma história de resgate do passado recente em favor do presente em curso e do futuro projetado.

A narrativa não é formada propriamente por um conjunto de acontecimentos dentro de uma trama convencional, mas sim por uma experiência sensorial que traz conflitos capazes de impactar os protagonistas, os antagonistas e o público. Em 1973, o Uruguai sofreu um golpe político que iniciou uma ditadura militar, responsável pela repressão aos militantes do grupo revolucionário Tupamaros. Nesse mesmo ano, José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández foram presos e encarcerados sem poderem se comunicar entre si. Ao longo dos doze anos em que estiveram aprisionados, eles precisaram sobreviver às torturas e ao afastamento radical da sociedade.

Os três companheiros militantes sentem na própria pele os efeitos da violência política perpetrada pelo Estado ditatorial uruguaio: a oposição ideológica à ditadura militar os levou à reclusão, à separação de seus familiares, às torturas, às lesões físicas e emocionais, às precárias condições de alimentação e higiene e à ameaça de enlouquecimento. O diretor Álvaro Brechner (“Sr. Kaplan“) expõe a deterioração dos personagens através das alucinações que sofrem na prisão enxergando a filha, a esposa e a mãe, filmadas de modo a evocar o aspecto imaginativo dos encontros e contrastar com a realidade opressora do aprisionamento. Além disso, as diferentes caracterizações dos cárceres revelam uma crescente degradação, começando com uma cela comum povoada por poucos móveis, indo para uma estrutura funda circular e feita de pedra e terminando em um cubículo no subsolo de uma mina.

Não apenas o trabalho do cineasta apresenta estratégias técnicas para transmitir o sofrimento dos três personagens, como também a própria performance do trio de atores principais contribui para isso. Antonio de la Torre (“El Reino“), Chino Darín (“O Anjo“) e Alfonso Tort (“Las Olas“) alternam entre variações emocionais profundas e intensas ao longo da obra, mas se destacam mesmo nos momentos em que precisam evocar o desespero, a dor, o pessimismo, a ousadia e outros tantos sentimentos através de sua entrega física. A postura corporal dos três homens sinaliza os diferentes tipos de martírio vivenciados pelas torturas físicas e psicológicas aplicadas por doze anos, potencializada também pelo excelente trabalho de maquiagem que acentua os impactos da sujeira, da falta de cuidados higiênicos e da fome naquele ambiente. Por exemplo, os dedos aparecem constantemente feridos e sensíveis por conta das tentativas de comunicação entre os presos à distância batendo-os nas paredes.

A frase de Kafka também vale para o público, que sente muito próximo de si a violência praticada. Recorrentemente são feitos planos subjetivos que nos colocam no ponto de vista dos homens presos, quando estão vendados sob uma aflição muito grande. Também planos aproximados que nos inserem dentro da ação, quando as torturas estão sendo feitas, e sons subjetivos que nos fazem mergulhar na alucinação causada pelo encarceramento, quando pequenos sons de animais ganham uma enorme proporção e ruídos inexistentes atormentam a mente. Tais recursos apontam para uma sequência de atos de violência, que incluem o sufocamento e a proibição de falar ou de circular por toda a cela.

A ideia de sentir na própria pele, em menor intensidade, resvala nos militares. Apesar das crueldades cometidas, as autoridades repressivas enfrentam a atitude desafiadora de Mujica, como quando supera seus delírios e grita ofensas aos oficiais até conseguir os objetos deixados por sua mãe na última visita, quando assistem ao apego de Eleuterio às lembranças ou projeções da esposa e às visitas da filha como alívio para sua existência, e quando observam a veia artística de Mauricio se expressar nas cartas amorosas escritas em nome dos guardas para suas namoradas. Os três juntos ainda conseguem criar o sistema de comunicação entre as celas que os permite jogar uma partida imaginária de xadrez.

Dar atenção aos componentes emocionais não impede o filme de contextualizar e explicar os conflitos sociais do período. Fazendo sutilmente esse processo, a narrativa traz cartelas no início e no fim para descrever a efetivação da ditadura e os destinos dos militantes após sua libertação. Ela também utiliza sequências específicas e o design sonoro para revelar características amplas da época: a excessiva hierarquização do Exército vista no momento em que Eleuterio não consegue usar o banheiro por estar acorrentado, criando um problema que exige a participação de todas as figuras de comando do quartel; a falta de informações para as famílias sobre os presos, vista na mãe de Mujica que não consegue informações do filho; as alucinações de Mujica compostas pelos efeitos sonoros pronunciados; e a caracterização do contexto pela inserção de notícias de TV e rádio à trama.

Ao final, em tempos de revisionismo histórico e relativização dos males de ditaduras militares na América Latina, um filme como “Uma Noite de 12 Anos” adquire ainda mais importância. Assumir que o futuro de um país não se desenvolve escondendo seu passado, que uma democracia só se efetiva concretamente recuperando continuamente a história e que os valores humanos não são negociáveis torna essa experiência cinematográfica tão necessária. Diversas vantagens conseguidas por conta da capacidade emocional dessa obra.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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