Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 11 de agosto de 2019

Boi (Netflix, 2019): tentativas em vão

A obra de suspense é tecnicamente encantadora, mas traz um enredo mal explorado e sem coesão.

Desde o sucesso de “La Casa de Papel”, a Netflix tem investido cada vez mais na indústria cinematográfica espanhola, resultando em obras de muito êxito, tanto em suas produções originais, como é o caso de “Durante a Tormenta”, quanto na distribuição de filmes, como “Um Contratempo”. Dessa vez, a aposta do serviço de streaming é a estreia de Jorge M. Fontana como diretor: “Boi”.

O longa acompanha a jornada de Boi (Bernat Quintan, da série “El cor de la ciutat”) em seus primeiros dias de trabalho como motorista particular. Lidando com a falta de notícias de Anna (Miranda Gas, “Veronica: Jogo Sobrenatural”), sua namorada grávida, e com o fato de não conseguir que seu livro seja publicado, Boi recebe a missão de conduzir os empresários asiáticos Gordon (Adrian Pang, “Hacker”) e Michael (Andrew Lua, “Love…And Other Bad Habits”) e acaba implicando-se num imbróglio desses dois.

Com alguns elementos de realismo fantástico, “Boi” traz uma trama que busca brincar com a curiosidade do espectador para contar uma história de autodescoberta. O filme propõe-se a ser uma espécie de cult moderno, abordando indagações sobre escolhas de vida e família, e faz isso atrelado a escolhas técnicas muito bem pensadas. As cores verde e vermelha são utilizadas como protagonistas da estética do filme de forma distinta, imprimindo uma beleza encantadora para a obra. O mesmo acontece com a trilha sonora e a montagem, que conseguem deixar a atmosfera enigmática e atraente. O problema é que esses aspectos não são suficientes para sustentar o longa, por mais interessantes que sejam.

Um dos pontos mais questionáveis do filme é a falta de coesão entre os enredos. Fontana tenta lidar com diferentes histórias em seu roteiro: o sumiço de Anna, a rejeição do livro de Boi, a confusão em que os empresários se encontram e a caminhada de autodescoberta do protagonista. Essas histórias têm muito potencial, o embaraço é que nenhuma delas é bem explorada. Todas são abordadas de forma muito corrida e nenhuma tem um destaque realmente significativo. Por serem muito apressadas, acabam não conseguindo se relacionar coerentemente. Parece um bombardeio de informações que não levam a lugar algum, fazendo com que o espectador constantemente questione o motivo de determinada situação estar sendo apresentada naquele momento.

Além disso, o roteiro tenta inserir na história algumas referências surreais à la David Lynch, de “Cidade dos Sonhos”, como a presença de um anão seguindo Boi em vários momentos do filme e um comercial de café muito peculiar. Só que essas referências contribuem mais ainda para a falta de coesão do filme, pois parecem estar ali somente como uma forma de deixá-lo mais sofisticado e profundo, não acrescentando qualquer significação à obra. Aliás, fazer com que “Boi” tenha essas qualidades é uma característica óbvia na direção e, principalmente, no roteiro de Jorge M. Fontana. Ele é recheado de diálogos que eram para ser filosóficos e de reflexões sobre família, mas sem a profundidade que sugerem ter. Na conversa que Boi e Gordon têm no carro, por exemplo, Gordon fala sobre sua relação com a família, e isso leva Boi a perceber o que realmente importa na vida. Esse diálogo tinha a intenção de ser o momento mais forte do filme, mas é escrito utilizando discursos clichês que não cabem naquele momento, e por isso a emoção que a cena deveria ter não é sentida. A falta de profundidade do roteiro, inclusive, prejudica diretamente a performance dos atores, que embora tentem entregar o máximo possível, limitam-se a um desempenho mediano.

O longa não consegue ser mais que uma tentativa. Ele tenta abordar muitas histórias diferentes. Tenta ser filosófico demais. Tenta ser reflexivo demais. Tenta ser culto demais. Ele tenta, tenta, tenta, mas não consegue ser bem-sucedido em suas escolhas. Assim, “Boi” é um filme com uma ótima parte técnica e teria potencial para estar acima da média se não se perdesse em pretensões.

Ana B. Barros
@rapadura

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