Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 02 de agosto de 2019

Mademoiselle Paradis (2017): Paradis à luz do que não se vê

O longa pretende tanto ser drama épico quanto alegórico, mas falha na execução sóbria e displicente quanto à abordagem de arcos complexos.

Mademoiselle Paradis” narra a história de Maria Theresia Paradis e sua sina amarga como pianista. Sendo mulher e tendo se tornado deficiente visual na infância, a artista viveu em meados do século XVIII, uma época em que ambas características citadas seriam entraves para seguir quaisquer carreiras. Assim, o filme escolhe abordar o recorte da biografia dela que diz respeito ao período em que a moça – interpretada por Maria Dragus (“A Fita Branca”) – conhece Dr. Mesmer, encenado por Devid Striesow (“Os Falsários”), um médico/curandeiro que explora métodos alternativos os quais seriam responsáveis pela posterior cura da cegueira de Paradis. Dessa maneira, ela passa a ter contato com um mundo completamente novo a sua frente, posto que inexplorado, de modo que essa descoberta tem implicações diretas na sua forma de fazer arte.

É sob essa premissa que Barbara Albert (“Nordrand”), diretora do projeto, constrói um drama épico simples, sem arrodeios e de poucos riscos assumidos, sob um primeiro olhar. À medida que a narrativa avança, entretanto, uma confluência de problemas quanto a essas decisões pouco ousadas começa a aparecer, no sentido de que essa simplicidade é, por muitas vezes, confundida com displicência. Forte exemplo disso está na fotografia de Christine A. Maier (“Nordrand”), que num primeiro momento parece consistente, com largo uso de luz natural e opção por um tratamento de cor puxado para tons frios, escolhas que reforçam o cenário e situam a obra no recorte temporal e psicológico pretendido. Sob outro viés, tais decisões, se somadas à quase inexistente variação de ângulos e de planos durante o desenrolar do longa, conferem à obra um caráter estático, preguiçoso e quase monótono, revelando uma certa dificuldade da direção em fazer sugestões, brincar com o implícito ou desafiar a inteligência do espectador em algum momento.

Outro problema do filme consiste na opção do roteiro pelo maniqueísmo, de forma que os personagens acabam sendo planos e mediocremente construídos, quase sempre logrando desenvolvimentos arquetípicos ou caricatos. Uma boa surpresa e exceção a isso se encontra na atuação de Dragus como Paradis, a qual em um primeiro momento pode parecer exageradamente teatral, mas com o desenrolar narrativo, essa entrega da atriz é tão crível e certeira que não se consegue imaginar outra pessoa que convencesse tão bem no papel.

Desse modo, a atriz conduz a sua Paradis por um enredo que, por mais simplório e previsível que seja, não deixa de encher os olhos e de ser filosofia. Existe todo um debate no longa a respeito da construção de arte, dos esforços para que esse processo criativo exista e do próprio caráter antropofágico e autoflagelativo do fazer artístico. Portanto, frequentemente somos induzidos a conceitos freudianos complexos (principalmente no que se refere às pulsões de vida e de morte) sem que seja pesado ou pedante, mas de forma capaz de incitar o espectador a inúmeras reflexões. Até que ponto a vida do autor gira em torno de sua obra? De que forma o artista se funde à sua criação? A dor é, necessariamente, o maior mote para a arte de qualidade? E o que configura essa dita arte de qualidade? Essas são algumas das inquietações levantadas por “Mademoiselle Paradis” que o filme não consegue solucionar – e que tampouco alguém jamais o fará. E é nessa alegoria artística que se encontra o maior triunfo dessa obra: no levantamento dessas questões pela inocente e apaixonada Theresia, à medida que essa vai recuperando sua visão e tendo contato com uma realidade apenas parcialmente conhecida. Isso ocorre por meio de belas e contemplativas cenas de uma Paradis (re)conhecendo o mundo, suas cores e suas luzes – com uma forte referência ao mito platônico da caverna – e se apaixonando pela primeira vez por algo que não seja sua música, se sentindo alguém como nunca antes sentira.

Sob essa óptica, a direção faz um trabalho muito preciso na opção por uma trilha sonora pouco trabalhada, que contrasta momentos de tenro silêncio quebrados pela melodia latente e passional de Theresia, revelando a catarse da personagem ao tocar piano, na única situação que validava sua existência para as outras pessoas – quiçá para si. Logo, o final mordaz conclui o filme de maneira bastante satisfatória, por mais que fique no espectador a sensação de que alguns pontos foram tocados tangencialmente – a rivalidade feminina e a misoginia propagada pelas próprias mulheres, por exemplo, mencionada muitas vezes, mas de modo superficial – e de que alguns arcos e buracos não foram preenchidos.

Lígia Amora
@rapadura

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