Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 02 de agosto de 2019

Em Trânsito (2018): uma obra atemporal

O diretor Christian Petzold brinca com nossas percepções de forma inteligente para recontar histórias de imigrantes refugiados.

A adaptação do romance homônimo “Em Trânsito” de Anna Seghers toca em assuntos sensíveis do presente que refletem o passado. Com a tomada nazista em Paris, Georg (Franz Rogowski, “Victoria”) planeja fugir para Marselha com seu amigo Heinz (Ronald Kukulies, “Enquanto Estávamos Sonhando”), porém alguns dias antes um outro amigo, Paul (Sebastian Hülk, da série “Dark”), pede para que ele entregue uma carta a um famoso escritor. Ao tentar atender esse pedido, Georg descobre que o escritor morreu e uma sucessão de eventos o faz assumir sua identidade e conhecer sua viúva, Marie (Paula Beer, “Nunca Deixe de Lembrar”), pela qual se apaixona.

O filme traz uma realidade imaginativa. A falta de localização no tempo, montagem e estrutura narrativa confundem o espectador, tornando o final aberto para especulações. Misturando clássico e modernidade nos figurinos e direção de arte, a direção de Christian Petzold (“Phoenix”) deixa dúbio em qual período de tempo a história é situada, comunicando que os erros do passado estão se repetindo no presente. Trazer os alemães de volta a situações hoje vividas pelos refugiados que se abrigam na Europa inverte papéis, promovendo empatia por um povo que é marginalizado e constantemente desumanizado. E humanizar os imigrantes é o objetivo central do filme, alcançado por retratar a importância de contar suas histórias. Enquanto se enxerga os refugiados como um problema a ser lidado, é fácil esquecer que cada um existe como um indivíduo e tem uma história para ser contada. O filme trabalha isso de diversas formas em sua estrutura narrativa que mostra pequenos contos dentro de uma história central, a de Georg, explorando sua relação com diversos núcleos de personagens.

Além disso, a história é narrada por um personagem secundário que só aparecerá no terceiro ato, descrevendo as cenas inicialmente de forma literal e por vezes incorporando elementos que não combinam com o que vemos. Como se a história de Georg ganhasse as páginas de um livro, não se sabe o que é realidade e o que foi romantizado pelas palavras do narrador.

A angústia da falta de identidade também é retratada pelos pensamentos solitários do personagem principal ao chegar em Marselha. Isso é ressaltado especialmente em uma singela sequência na qual Georg canta uma canção que o conecta com suas raízes e ao mesmo tempo – através da belíssima atuação de Rogowski – lhe confere um vazio, por lembrar que a um refugiado não há o direito de retornar.

O romance de Georg e Marie é introduzido tardiamente na história e, embora seja importante para a trama, não há tempo para se apegar ao casal, especialmente após vermos uma relação bem construída e cativante do falso escritor com Driss (Lilien Batman, “Vermisst in Berlin”). No entanto, através da fotografia, nota-se que Marie surge como um brilho na vida de Georg, contrastando com as cenas escuras de “frame within a frame” (quando a fotografia usa um elemento dentro da própria cena para enquadrar o assunto principal, criando um segundo quadro dentro da imagem), sugerindo encarceramento, pois o alemão vive em constante fuga.

A adaptação carrega uma mensagem forte, mas sem ser óbvia, convidando o espectador a refletir sobre os caminhos que se repetem na história da sociedade. E o mais importante, a olhar para os refugiados: pessoas que foram marginalizadas, mas têm suas histórias, relações, dores e amores, porque acima de tudo são pessoas.

Tayana Teister
@tayteister

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