Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 30 de julho de 2019

Saint Seiya – Os Cavaleiros do Zodíaco (Netflix, 1ª Temporada): a pressa é inimiga da perfeição

Apesar de revisitar a franquia com dinamismo e uma competente animação, episódios desperdiçam chances de melhorar roteiro, apressam-se demais e perdem o que a obra original tinha de destaque: emoção.

A Toei Animation sabe do sucesso de “Cavaleiros do Zodíaco” em outros países e da sempre rentável venda de bonecos (cloth myths) e outros produtos que a franquia proporciona. Para melhor aproveitar seu potencial comercial, ela vem procurando gerar novas obras que revitalizem o hype dos anos 80 e 90 que a série original tinha, mas animes como “Saint Seiya Ω”, “Alma de Ouro”, “Saintia Shô”, “Lost Canvas” e o longa “A Lenda do Santuário” sempre dividiram opiniões e nunca tiveram o sucesso esperado. Seguindo a personalidade do protagonista Seiya e nunca desistindo, a Toei se juntou à Netflix para lançar “Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco”, outra tentativa de trazer de volta à franquia o mesmo nível de relevância de décadas anteriores.

Nesta nova série, fica clara a abordagem mais moderna proposta pela equipe do diretor Yoshiharu Ashino (“D. Gray-man Hallow”). A ambientação está no século XXI, com celulares e a internet fazendo parte do cotidiano. A presença de um novo antagonista, Vander Graad, traz elementos militares e uma relação com Mitsumasa Kido (avô adotivo de Saori, a reencarnação de Atena) que, no primeiro episódio, mostra tons da interessante dicotomia entre Magneto e Charles Xavier nos “X-Men“, mas que parece ter sido esquecida.

A nova série é um remake da original. Os mesmos arcos estão presentes e a mesma história base de que a deusa Atena reencarna após centenas de anos e que aparecem cavaleiros para defendê-la das ambições de outros deuses que querem conquistar ou destruir o planeta. Cada cavaleiro tem seu poder (ou “cosmo”) e armadura advindos de uma constelação. Aqui havia uma ótima chance de pegar a boa trama e melhorá-la, consertando os inúmeros furos no roteiro que existiam e trazer uma narrativa mais coesa, o que resultou em alguns acertos e algumas oportunidades perdidas.

A narrativa é claramente mais dinâmica, o que é refletido nos diálogos mais joviais que encaixam bem com protagonistas adolescentes. Você provavelmente já ouviu falar da famigerada cena em que Seiya bate boca com um bueiro, que se por um lado não faz sentido existir o motivo pelo qual a tampa tecnológica fala, rende uma cena comicamente bem escrita e executada, que traz um ritmo ao personagem principal que encaixa melhor com sua energia.

Ao mesmo tempo, a série falha bastante ao apressar acontecimentos vitais para o desenvolvimento dos relacionamentos. A amizade do grupo principal acontece tão do nada que é impossível se conectar e entender o porquê de um sofrer e estar disposto a se sacrificar pelo bem do outro, o que na série original era bem construído. O maior exemplo disso é na primeira grande luta entre Seiya e Shiryu. No original, ambos são apresentados, suas motivações ficam claras e, mesmo com ritmo lento, era uma batalha carregada de emoção, resultando num clímax que facilmente transmite a índole dos heróis e o laço criado entre eles. Nesta nova adaptação, tudo é resolvido tão rápido que o espectador se pega estranhando a repentina afeição ao invés de admirá-la. Pressa, aliás, é o grande defeito deste remake. O arco de Ikki como antagonista é apresentado e finalizado em tão pouco tempo que nada de sua jornada é realmente significativo.

Outra diferença que chama a atenção é de que a animação agora é em CGI ao contrário da tradicional 2D. Não é um trabalho ruim, as movimentações são ágeis e o cosmo fica muito bonito, é apenas uma questão de os fãs antigos precisarem de um tempo para se acostumar. Outro ponto visual é a redução da violência, não há sangue derramado aqui. Após duras batalhas, os cavaleiros ficam com as armaduras e corpos sujos, com pequenos arranhões. Tudo uma questão de poder ter uma classificação indicativa ampla, já que a linguagem é voltada claramente para um público bem jovem. Entretanto, a coesão se perde ao ter golpes que destroem aviões e helicópteros, mas apenas arranham um corpo humano.

Há algumas inconsistências provenientes das mudanças propostas. No cartaz, na abertura e encerramento do anime, os cavaleiros estão usando suas armaduras completas, ao passo que nos episódios quase ninguém usa elmos (o que é esquisito pois a cabeça precisa ser protegida numa luta). As amazonas, na obra original, precisavam usar máscaras, mas aqui isso não é necessário. A personagem Marin possui uma, mas a própria produção já revelou que isso será desenvolvido posteriormente.

Os fãs de longa data provavelmente assistirão à versão dublada e ficarão felizes de saber que os dubladores originais estão todos de volta, com exceção de Shun, originalmente dublado por Ulisses Bezerra, mas aqui substituído por sua irmã, Úrsula Bezerra, já que o gênero da personagem foi mudado numa tentativa fraca de trazer mais representatividade para a franquia. Essa mudança não afeta em nada o desenvolvimento de Shun, e se era para aumentar a presença feminina, poderiam ter tido a coragem de desafiar convenções e mudar um personagem que não fosse tão meigo e andrógino. O trabalho dos dubladores é impecável como sempre, levantando apenas a questão de que os cavaleiros agora têm diálogos e trejeitos de adolescentes e as vozes são de adultos, mas isso não causa real incômodo.

Outra mudança, só percebida na versão legendada, é de que os nomes são diferentes, com exceção de Seiya. Aqui a explicação é a de que uma pessoa nascida e criada na Sibéria, por exemplo, não teria um nome japonês. Faz sentido, mas é um fato que exigirá um exercício de desapego dos fãs antigos. Hyoga é Magnus, Shiryu é Long, Ikki é Nero, Shun é Shaun e Saori é Sienna. Uma curiosidade é que o áudio original, por incrível que pareça, é em inglês. Tudo parte da tentativa da Toei de globalizar a franquia, refletida também ao trazer a banda inglesa The Struts para trazer sua versão de “Pegasus Fantasy” (porém, cantada como “Pegasus Destiny” no refrão) ao lado da original “Somebody New” como tema de encerramento.

“Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco” é uma releitura que acerta em vários aspectos. O próprio Mitsumasa Kido e seu trabalho para juntar cavaleiros para defender Atena são um avanço, já que no mangá ele saiu engravidando dezenas de mulheres mundo afora para que seus filhos fossem treinados, o que é uma proposta inverossímil e difícil de acreditar, mas que nesta adaptação foi transformado em algo deveras mais real e crível. A abordagem mais dinâmica e moderna funciona em vários aspectos, mas escorrega em outros, falhando no ponto vital da franquia que é sobre os laços entre os protagonistas e as emoções envolvidas nas lutas.

Bruno Passos
@passosnerds

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