Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 21 de julho de 2019

O Contador de Auschwitz (2018): precedente para o futuro

O documentário parte do julgamento de Oskar Gröning na cidade de Lüneburg para discutir a relação do povo alemão com o nazismo e com o Holocausto.

Todas as sociedades possuem eventos e períodos trágicos, dolorosos e chocantes em sua história que precisam ser enfrentados. Essa frase é dita, em termos semelhantes, por um dos personagens do documentário “O Contador de Auschwitz“, dirigido por Matthew Shoychet (“Anne Frank: 70 Years Later“) e distribuído pela Netflixcomo representação da narrativa e da forma como o povo alemão lida (ou não) com o nazismo, o Holocausto e as heranças malditas do passado. O filme mostra o julgamento de Oskar Gröning, um ex-oficial alemão da organização paramilitar SS durante a Segunda Guerra Mundial, em Lüneburg após a acusação de cumplicidade no assassinato de milhares de judeus no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau.

Diferentemente de outras produções sobre a temática, a abordagem do documentário não se concentra apenas na condição interna de cada sobrevivente, povoada por traumas e feridas. Por mais importante e necessária que seja a valorização dos depoimentos e das sensibilidades dos sobreviventes, o roteiro se debruça sobre outras questões também relevantes no debate contemporâneo (não subestimando o lado emocional daqueles que estiveram em Auschwitz): especialmente, as posturas do governo e da sociedade alemães diante das atitudes dos nazistas ao longo do tempo até chegar à conjuntura recente. Dentro de sua escolha narrativa, se torna expressiva a abertura que mostra as atrocidades cometidas pelo nazismo, justificadas da maneira mais absurda possível. As primeiras sequências apresentam a versão oficial para o genocídio dos judeus sob a voz de Oskar, alegando a responsabilidade dos próprios judeus para suas mortes, fossem eles adultos ou crianças, guiadas por uma trilha sonora dinâmica. Já as sequências seguintes evidenciam a desolação e a brutalidade do Holocausto, fazendo a câmera percorrer as ruínas do campo de concentração sem acompanhamento musical e com os relatos angustiantes de um dos sobreviventes.

Com o passar dos minutos, o documentário se abre para variadas perspectivas acerca da leitura do alemão sobre o passado nacional, tendo como eixo central o julgamento de um senhor de mais de noventa anos. Para dar conta desse aspecto temático, o filme utiliza narrações em voice over e entrevistas com sobreviventes, ativistas, juristas e estudiosos para explorar as formas distintas de se interagir com eventos já ocorridos. Existe uma galeria de personagens que acredita na importância de debater e encarar as mazelas passadas, para proteger a sociedade atual de outras experiências nocivas, e de julgar um senhor de idade também como ato simbólico de punição ao nazismo, mesmo não tendo conseguido fazer o mesmo com tantos outros homens. Há também aqueles que entendem ser infrutífero condenar Oskar depois de tanto tempo, alegando já se tratar de uma pessoa diferente após a passagem do tempo, e que preferem não se relacionar tão de perto com memórias desagradáveis. De um lado, se percebe o reconhecimento da influência do passado sobre o presente, por outro, se nota historicamente uma hesitação em relação à confrontação do passado sob o discurso de pensar no futuro a partir dali.

O nazismo também é incômodo para o país dentro de considerações jurídicas, afinal existem divergências quanto à maneira de julgar e punir os crimes perpetrados. Por meio de imagens de época, a narrativa remonta ao Tribunal de Nuremberg na década de 1940 para construir um panorama instigante sobre os avanços e as limitações do sistema legal e da justiça realizada. A partir desse segmento, é possível perceber como detalhes técnicos perpassaram os insucessos de muitos julgamentos; como as questões do “estou apenas cumprindo ordens” e “não matei ninguém” repercutiram como instrumentos de defesa para muitas pessoas; e como o autoritarismo daquela ideologia ainda continuou entre muitas figuras de poder mesmo após a derrocada do governo nazista. É essa última questão, por sinal, que conduz o documentário para a discussão da penetração da extrema direita, sob outras roupagens, nos dias atuais.

Há uma preocupação de utilizar imagens de arquivo, principalmente de matérias televisivas, para evidenciar a presença de grupos neonazistas se manifestando violentamente contra minorias sociais na atualidade. Uma escolha que fortalece ainda mais os vários depoimentos dados no sentido de lutar contra a banalização da violência e a repetição de ideologias, comportamentos ou experiências autoritárias, afirmando a importância de não apagar ou deturpar o passado; de valorizar os meios legais de punição a crimes tão chocantes cometidos, independentemente do tempo em que ocorreram; e de identificar a existência de indivíduos detentores de discursos e práticas brutais (como são os neonazistas e os negadores do Holocausto). Entretanto, em meio ao manancial de informações abordadas e direções seguidas pelo filme, o julgamento em si de Oskar Gröning não tem o devido destaque em tela que mereceria para fazer reverberar ainda mais seu significado político, social e histórico – o acontecimento é tratado indiretamente por alusões e citações de terceiros, e não pelo próprio réu, e também é conduzido desnecessariamente por um ritmo acelerado das sequências e da narração.

De modo geral, “O Contador de Auschwitz” reúne tantos elementos interessantes para trabalhar que sua fluidez narrativa fica comprometida. A própria questão central de uma sociedade lidando com seus demônios históricos e ainda percebendo a presença transformada de suas mazelas no presente oferece inúmeras possibilidades muito ricas de abordagem. O auto desafio de encadear tantos pontos possíveis, mencionar muitos exemplos concretos e costurar tudo isso dentro de uma perspectiva autoral faz o filme, por vezes, soar inconstante e de ritmo mais irregular. Nada, porém, que invalide a força de seu tema e a necessidade de sua mensagem sempre tão atual.

Ygor Pires
@YgorPiresM

Compartilhe