Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 19 de julho de 2019

Mal Nosso (2017): joia sem polimento

Mesmo com o baixo orçamento para desculpar falhas estéticas, a obra independente nacional mistura drama psicológico, medos existenciais e terror gráfico com honrarias.

Dentro do gênero do terror, há obras feitas para divertir fãs e outras para perturbar a alma. “Mal Nosso” se enquadra nesse segundo tipo com louvor. A produção brasileira independente e de relativo baixo orçamento é um achado pela ousadia do diretor e roteirista estreante Samuel Galli, pois no restrito mercado doméstico são raríssimas as obras desse tipo que conseguem encontrar público. Felizmente, a Netflix comprou direitos de distribuição na plataforma e o longa está disponível para os assinantes consumirem… por sua própria conta e risco.

Arthur (Ademir Esteves) é uma figura perturbada, de olhos pesados, e que carrega calado um problema a ser resolvido. Pelos cantos sombrios da internet ele encontra e contrata um assassino de aluguel, Charles (Ricardo Casella), que trabalha por gosto e expõe suas “habilidades” na rede. Já nos primeiros minutos da introdução podemos perceber o tom de agonia e escuridão presente nas mentes mais atormentadas. Os passos de Arthur refletem uma alma cansada e o diretor nos faz assistir com ele a um dos horrendos vídeos snuff de Charles, no qual ele escalpela uma mulher. Confiando na boa maquiagem e no estômago do espectador, Samuel deixa claro sobre o que devemos esperar de “Mal Nosso”.

Pouca coisa se justifica com o baixo orçamento e é visível a pobreza dos cenários e, principalmente, da fotografia. O tratamento do roteiro também deixa a desejar. Os diálogos são duros, sem alcance emocional, mas de certa maneira até cabem na frieza do elenco dado o clima do filme e ajudam no suspense. A mistura de drama psicológico e pavor existencial é que é a parte difícil de construir e nela a obra funciona, se posicionando ao lado de pérolas do horror nacional contemporâneo, como “As Boas Maneiras” e “Quando Eu Era Vivo”. O choque vem com a violência gráfica, que não é tão constante como em muitas produções importadas sobre assassinos, mas o terror mais pesado de lidar é o que se arrasta no rosto dos personagens que flertam com a morte e onde não há nenhum brilho de vida. Os poucos momentos de “luz” são os necessários para ilustrar as motivações por trás das ações do protagonista.

Quanto à estrutura, “Mal Nosso” também foge do usual. O público que resiste ao ato inicial investe na história pelo mistério, que é explicado de maneira não-linear. O desdobramento do que está por trás daquele contrato com o maníaco assassino é interessante e aos poucos traz toques sobrenaturais na linha de “O Sexto Sentido” e “Invocação do Mal”. Só não confunda o tom dos blockbusters com a linha que Samuel busca. Ela está mais próxima do terror de Ari Aster, por exemplo, de “Hereditário” e “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite”, se estes fossem feitos sem recursos. Poucas coisas influenciam tanto a atmosfera de uma obra de horror quanto a fotografia, mas esta não fez muito para a produção. Aqui, tal falta orçamentária limitou a construção visual, apesar da maquiagem eficaz e da compensação pela ótima montagem e trilha sonora sempre presente, que até lembram “Suspiria” pela função.

Com uma trupe de iniciantes, diálogos quadrados, cenários baratos e iluminação prática, Samuel Galli fez o mais difícil, que é contar uma história pesada com unidade de tom. Uma leitura superficial pode rapidamente julgar e desqualificar qualquer filme com cenas de violência explícita como gratuito, misógino e inferior. Porém, requer coragem para mergulhar no lado obscuro da humanidade e expor pavores existenciais que estão por trás da busca de propósito e de amor. Se fossem questões fáceis de lidar, o terror não seria o gênero ideal para mexer com nossos medos.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe