Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 17 de julho de 2019

4L (Netflix, 2019): jornada vazia

As viagens geográficas e intimistas pretendidas pelo longa são freadas por um roteiro deficiente que fica muito abaixo das intenções do filme.

Em filmes de jornada, o trajeto é a parte mais importante por mostrar as mudanças dos personagens. Em filmes de amizade, os valores fraternais são essenciais para criar uma história de companheirismo e intimidade. “4L”, produção espanhola distribuída pela Netflix, tenta ser esses dois subgêneros ao construir uma narrativa em torno de três amigos que não se veem há bastante tempo. Entretanto, a travessia de transformação em direção à amizade dos homens não convence como uma jornada interior nem como drama sentimental sobre parcerias em reencontro.

Existe uma dupla viagem acontecendo para os personagens. Primeiramente, Tocho (Hovik Keuchkerian, “O Homem que Matou Dom Quixote”) e Jean Pierre (Jean Reno, “Golpe de Risco”) saem de carro da Espanha ao Mali para reencontrar Joseba (Enrique San Francisco, “Quinqui Stars”), um velho amigo à beira da morte. Para isso, recuperam o veículo que tantas vezes usaram em outras viagens no mesmo percurso, um próprio para o Rally Dakar pelo deserto. Antes de pegarem a estrada, eles encontram Ely (Susana Abaitua, “Santo Acampamento”), filha de Joseba, que insiste em acompanhá-los. A partir daí, os três se moverão em direção aos seus próprios conflitos enquanto buscam o homem na cidade de Tombuctu.

Antes de iniciar o deslocamento em si, a narrativa apresenta o trio principal. Quem mais recebe alguma atenção nas primeiras sequências é Tocho, apesar de todos os atores carecerem de indicações para compor os personagens. O texto fornece poucas e imediatas características aos três, sendo incapaz de torná-los complexos e críveis: Tocho é sisudo, carrancudo, solitário e viciado em bebidas e cigarro; Jean Pierre tenta parecer alguém sofisticado de modos requintados e tem problemas conjugais; e Ely é rebelde e dona de um temperamento forte que a faz enfrentar qualquer um à sua frente. Dessa maneira, o público não se sente envolvido por nenhum deles porque não os conhece minimamente, não acredita na amizade entre os dois sujeitos, não entende as razões em suas vidas que os levaram à viagem e não aceita os conflitos surgidos por causa de Ely.

Quando o filme avança para a peregrinação pelo deserto africano, outros problemas igualmente sérios acontecem. Do ponto de vista emocional, o diretor Gerardo Olivares (“Dos Catalunãs”) e os outros roteiristas, María Jesús Petrement e Chema Rodríguez (“Los gigantes no existen”), não conseguem dar peso dramático à busca por Joseba, que simplesmente se torna um objetivo racional ao longo da projeção. O pouco desenvolvimento dado à amizade entre eles e ao vínculo emocional com o amigo separado são as grandes causas para um conflito que soa artificial e frio. Mesmo mostrando imagens de vídeos caseiros feitos por eles no passado sob a narração de Joseba, falta uma construção narrativa contínua e evolutiva que faça o reencontro ser um clímax aguardado – o recurso é utilizado no início do segundo ato e, em seguida, relegado a poucos momentos esporádicos.

Se dramaticamente o cineasta falha na construção das relações entre os personagens, a filmagem no deserto pode ser elogiada. O local é enquadrado com planos gerais e aéreos compatíveis com sua extensão espacial, enquanto a trilha sonora instrumental ou as canções da obra pontuam as passagens em que o público assiste o carro em deslocamento. Além disso, os efeitos do deserto sobre os indivíduos são transmitidos com verossimilhança, revelando como a falta de água e de alimentos, a distância em relação aos centros urbanos e as dificuldades operacionais com o carro impactam em seus corpos. Em termos visuais, portanto, a questão da jornada por um ambiente adverso foi bem apresentada dentro de um arco crescente.

Por outro lado, é o roteiro que não acompanha o trabalho estético eficiente. O road movie pretendido deveria gerar uma comédia dramática, porém os dois gêneros são mal construídos independentemente e mal articulados. O lado cômico pode ser observado nas tentativas muito claras de fazer humor que fracassam, como as diferenças de idioma entre distintas nacionalidades e as aparições de um contrabandista e de um “antagonista” durante o trajeto. A dimensão dramática surge na aparição de um personagem africano que possui seu próprio arco e na aventura dos três personagens principais para atravessar o deserto tendo suas naturezas afetadas, sendo pouco fortalecida em razão da fraqueza na construção de Jean Pierre e Ely e das mudanças abruptas em Tocho.

Aparentando ser em suma um filme sobre a jornada interna de pessoas quebradas por dentro que vão se reconstruindo durante a travessia pelo deserto, “4L” se torna um conjunto de muitos erros. O trajeto que toma a maior parte da narrativa e deveria ser um dos pontos forte, na realidade, se revela arrastado, vazio de significados e capenga para costurar a sensação de liberdade que o deserto africano sugere e as trajetórias de cada um dos viajantes. Ao inserir mais personagens ao longo da jornada, a produção se transforma em uma aventura desinteressante que enfraquece até mesmo seu clímax. Quando os reencontros acontecem, o público já se cansou da viagem.

Ygor Pires
@YgorPiresM

Compartilhe