Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 02 de julho de 2019

Graças a Deus (2018): silêncio da dor, silêncio da impunidade

Os crimes de pedofilia dentro da Igreja Católica são o tema de "Graças a Deus", um filme que comprova como a simplicidade da linguagem pode potencializar a discussão.

A Igreja Católica já passou por uma série de erros, práticas violentas ou atitudes políticas reprováveis em sua trajetória histórica. Perseguições na Idade Média que culminaram com mortes na fogueira, repressão a filósofos e cientistas renascentistas discordantes dos ideais eclesiásticos e legitimação de governos autoritários são alguns exemplos de ações que exigiram autocrítica e mudança de postura da instituição. Mesmo que esse reconhecimento tenha levado algum tempo, ações foram tomadas para não repetir tais incidentes. Algo semelhante vem ocorrendo atualmente com as denúncias de pedofilia contra padres católicos e com as reações tardias da Igreja para combater o problema. Essa é a temática de “Graças a Deus“, filme de François Ozon (“O Amante Duplo”).

A produção se inicia com a decisão de Alexandre (Melvil Poupaud, “Quando Margot Encontra Margot”) de escrever uma carta à Igreja Católica revelando os abusos sexuais que sofreu na infância pelo padre Preynat (Bernard Verley, “Rodin”). As cobranças pela exoneração do clérigo não surtem efeito e, ainda por cima, não impedem que Preynat continue atuando junto às crianças. Tomando coragem para publicar a carta e processar judicialmente o padre, Alexandre influencia no aparecimento de outras denúncias contra o mesmo homem e contra a conivência do cardeal Barbarin (François Marthouret, “O Grande Jogo”). François (Denis Ménochet, “Custódia”) e Emmanuel (Swann Arland, “A Vida de uma Mulher”) se juntam ao primeiro homem para formar um grupo de pressão contra a passividade da Igreja Católica e exigir providências.

A maneira como esses casos ressurgem e como a instituição religiosa hesita em agir revela diferentes perspectivas sobre o tema. Em relação às vítimas, são apresentadas as consequências a longo prazo dos abusos sexuais. Elas são exemplificadas pelas dificuldades de relacionamento e pelas marcas físicas de Emmanuel; nas reações distintas causadas pelo confronto com os traumas, marcado pela negação que tenta evitar novos sofrimentos; pela repressão psicológica criada inconscientemente; pelas hesitações quanto à possibilidade de trazer à tona algo do passado e pela firmeza de lutar contra a impunidade dos crimes. Também aparecem nos questionamentos das razões para o silêncio das vítimas por tanto tempo, passando pela incompreensão das crianças sobre o que significa aquela violência e pela admiração da figura carismática que era o padre; e pela irrupção abrupta das lembranças das violações, trazendo de volta a dor de fatos que agora precisam ser trabalhados através de flashbacks.

Inicialmente, os primeiros contatos com a Igreja Católica são feitos por Alexandre através de correspondências entre ele, a mediadora da instituição e o cardeal que levam a um encontro com o padre Preynat. Nesses momentos, o filme aposta em uma verborragia com a narração extensa das cartas enviadas e suas respostas, algo necessário para iniciar a aproximação das vítimas, mas que corre o risco de se tornar cansativo pela repetição. Antes de definitivamente entediar o público com o recurso, a narrativa se transforma quando novos homens molestados na infância seguem o exemplo de Alexandre e passam a pressionar de modo mais contundente a Igreja. O estilo muda para alternar o protagonismo das sequências entre Alexandre, François e Emmanuel e, assim, mostrar como foram afetados e se comportam no presente quanto aos traumas e as medidas que tomam.

O painel da pedofilia se torna mais complexo graças à apresentação do ponto de vista dos “espectadores”, das pessoas que souberam dos abusos, mas não agiram concretamente. O roteiro não julga esses personagens, preferindo demonstrar como eles se culpam por não terem feito nada e como não dimensionaram o que as crianças diziam ter passado. Funcionários da Igreja, como a secretária ouvida por Alexandre, até conheciam os fatos, porém, não tomaram providências e nem compreendem muito bem o porquê de sua falta de atitude. Assim como os pais das crianças que, mesmo tempos depois das violações, quando ouviam dos filhos o que aconteceu, não denunciaram. Os pais alegavam protegê-los da exposição na mídia e na justiça e diminuir o peso dos abusos por conta do carinho e da simpatia do padre.

Ainda há também a percepção dos membros da Igreja Católica para a situação. Padre Preynat choca por não disfarçar os abusos que cometeu nem negar seu comportamento doente quando é confrontado pelas vítimas ou por policiais, ao mesmo tempo custa a pedir perdão pelos crimes e a perceber que a intimidade que tanto tenta preservar com os homens é fruto de uma relação condenável e criminosa. Já o cardeal Barbarin atua como o símbolo de uma instituição que tenta diminuir a gravidade dos crimes e evitar punições duras que possam manchar a imagem da Igreja, apesar do discurso oficial e moralizador de combate à pedofilia. Essa autoridade, por sinal, discorda da associação em uma frase das palavras padre e pedofilia e pronuncia a expressão “graças a Deus” em momento inapropriado após a pergunta de um jornalista sobre as denúncias.

Conforme a produção se desenrola, François Ozon reafirma sua opção por um estilo quase invisível que não chame atenção para sua direção, já que os enquadramentos são esteticamente rigorosos e discretos combinados com uma sucessão tradicional de plano, contra-plano e closes. A linguagem moderada procura enaltecer a gravidade do tema da pedofilia dentro da Igreja Católica e das consequências dos crimes, que fizeram suas vítimas procurar a própria instituição religiosa, a imprensa, a polícia e a união entre si em uma organização para impedir o esquecimento. Uma atitude que enfrenta o silêncio de tantos anos de dor e as ameaças de impunidade para o futuro.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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