Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 21 de junho de 2019

Gauguin – Viagem ao Taiti (2017): solidão primitiva

Retratando uma passagem incomum da vida do pintor Paul Gauguin, o filme de Edouard Deluc fala sobre solidão, natureza e traços selvagens e primitivos da humanidade com altos e baixos.

Paul Gauguin foi um pintor francês pertencente ao movimento artístico pós-impressionista no século XIX. Transitando por França, Grã-Bretanha, Dinamarca e outros países, o artista desenvolveu um estilo fortemente naturalista, destacando cores, imaginação e emoções, mas ainda insuficiente para lhe render reconhecimento pelos críticos. Após muitos anos de vivência nos principais centros europeus, ele decide viajar para o Taiti em 1891 à procura de inspiração em contato direto com a natureza e com os aborígenes. A viagem para a Oceania é o tema de “Gauguin – Viagem ao Taiti”, produção dirigida por Edouard Deluc (“Mariage à Mendoza“).

O roteiro, então, se debruça sobre a permanência de Paul (Vincent Cassel, “O Grande Circo Místico“) neste território da Polinésia, onde pretende se reencontrar com um estilo de arte livre, selvagem e desapegado aos códigos morais e estéticos da Europa da época. Separando-se dos amigos e da família, ele se infiltra na selva, enfrentando a solidão e a pobreza, e acaba encontrando uma aldeia de nativos. No local, conhece Tehura (a estreante Tuheï Adams) e a torna sua esposa e musa de suas telas.

A narrativa tem início na Paris do século XIX, onde o protagonista não se sente confortável devido à incapacidade de viver de suas pinturas, à consequente miséria decorrente da falta de compradores, à ausência de apoio e confiança de seus familiares e ao desgosto de estar em uma cidade insalubre, egoísta e desagradável. Os problemas identificados na capital francesa nem sempre são apresentados com eficiência pela direção e pelo roteiro. Até existem cenas para mostrar as dificuldades de vender suas obras e a incompatibilidade entre Paul e sua família na casa humilde e suja que o patriarca encontrou para morarem, mas falta construção narrativa que não seja somente diálogos expositivos para comprovar o desagrado do personagem com a cidade. O elemento que quase compensa essas deficiências é a bem-sucedida representação da fragilidade física de Paul.

Não desejando permanecer em um cenário desolador para si, o artista acredita que o caos urbano, a falta de inspiração e as dificuldades de sobrevivência apenas poderiam ser revertidos com o refúgio em uma área isolada em contato com o meio ambiente. Para Paul, a bucólica ilha na Oceania poderia reconectá-lo ao seu próprio íntimo, ao seu subconsciente sem amarras, à essência humana livre e despreocupada com regras sociais e códigos morais limitadores. Em sua concepção, o primitivismo da natureza se encontraria no aspecto “selvagem” do homem, nas suas características como uma espécie animal. Dessa forma, o pintor busca diferentes tipos de conexão, desde pescar para conseguir alimento, dormir na grama, retirar a matéria-prima do meio para produzir sua arte até conviver com a população nativa, em especial Tehura. Em tais momentos, Edouard Deluc filma cada sequência muito calmamente, explorando planos longos sem diálogos e planos gerais da natureza.

A suposta adaptação do pintor ao novo cenário (entender-se com a população local, incentivá-la a criar peças de arte, desfrutar da beleza do ambiente e se relacionar com Tehura), logo se transforma em obstáculo para o contato com outras pessoas. Sintomas de diabetes não o abandonam, devido a uma tosse constante; a relação com a esposa se deteriora por conta do ciúme dele, graças ao aparecimento de outro aborígene; a insistência em fazer a mulher posar para suas telas, como quando a vê em uma situação vulnerável e ainda assim começa a pintá-la; e a incapacidade de vender suas obras e de ter seu talento reconhecido mesmo acreditando na força do meio ambiente. Com tantos reveses, Paul novamente falha em estabelecer um vínculo sólido com o lugar onde está e com as pessoas ao seu redor, o que lhe deixa solitário e carente de um senso de pertencimento. Entretanto, o segundo ato não consegue explorar as novas dificuldades ocorridas no Taiti, sendo superficial no tratamento aos desentendimentos entre Paul e a esposa e às razões para interromper suas pinturas com sequências que pouco intensificam esses conflitos.

Falar nos defeitos dramáticos dessa parte não significa desconsiderar os dois principais méritos do filme. O primeiro deles é a trilha sonora instrumental delicada e melancólica que conduz o ritmo e as emoções das sequências sem diálogo, alternando entre o encantamento inicial do pintor com o cenário e a frustração de não triunfar nas artes nem no relacionamento com Tehura. Já o segundo é a atuação de Vincent Cassel, que se entrega ao personagem sem vaidades e convence como alguém que não se encaixa em Paris e na família, sofre da instabilidade física representada pelo corpo debilitado e pela barba por fazer, ama sua arte (mesmo doente, desenha na janela do quarto) e volta a ter uma solidão melancólica quando não se adapta a uma nova realidade.

“Gauguin – Viagem ao Taiti” se desenvolve até o desfecho para reforçar a solidão recorrente do personagem, como se verifica nos créditos finais que explicam os desdobramentos infelizes de sua passagem pela ilha. Uma solidão que está muito associada à natureza humana selvagem do artista Paul Gauguin e referenciada pela fala de um colega na despedida de Paris e, principalmente, na voz em off do próprio protagonista que diz: “Sou uma criança. Sou um selvagem. Quem me critica não sabe o que há no espírito de um artista”. Um tema abordado com oscilações pela narrativa, que precisaria investir mais forte nos conflitos do pintor.

 

Ygor Pires
@YgorPiresM

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