Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 19 de junho de 2019

Está Tudo Certo (Netflix, 2018): a dor do silêncio

Drama alemão da Netflix usa da violência silenciosa para contar uma história de imposição e reflexão.

O “suspense doméstico” ficou mais conhecido pelas mãos do diretor iraniano Asghar Farhadi. Em seus filmes como “A Separação” e “O Apartamento”, ele trabalhou o desconforto de casos que eram aparentemente banais e corriqueiros, mas que se tornavam uma bola de neve à medida que novos fatores iam sendo revelados. O novo drama alemão da Netflix faz algo parecido, mas ao invés de ir pelo caminho da violência externa, foca nos conflitos internos de sua protagonista Janne (Aenne Schwarz, “Stefan Zweig: Adeus, Europa”), que após sofrer um estupro do cunhado de seu chefe, se pergunta se ela mesmo poderia ter evitado parte das coisas que aconteceram em sua vida, fazendo com que uma crise existencial mova a narrativa de “Está Tudo Certo”.

O filme da estreante Eva Trobisch caminha por vias polêmicas ao fazer com que um estupro seja o catalisador de uma mudança na vida de Janne, que antes de tudo acontecer vivia amorosamente bem com o namorado Piet (Andreas Döhler, “Die Hände meiner Mutter”). Ambos passavam por algumas dificuldades financeiras provindas de uma mudança repentina e, numa festa de confraternização do trabalho, Martin (Hans Löw, “As Faces de Toni Erdmann”), cunhado do chefe de Janne, a estupra. A cena é ancorada numa crescente sensação de incômodo pois não há uma violência gráfica em tela, e sim uma troca de olhares de duas pessoas alcoolizadas e rindo de cada coisa que falam, seguida de comentários constrangedores que culminam no ato.

Surpreendentemente logo em sequência, a tranquilidade toma conta da trama. É como se Janne estivesse anestesiada e não entendido muito bem o que aconteceu. Eva enche a tela com planos detalhe no rosto da personagem, evidenciando que o problema está dentro uma vez que os olhos são a janela da alma. Quando ela se dá conta do que aconteceu já é tarde, pois tem que lidar com o relacionamento, problemas no trabalho e a convivência quase obrigatória com seu estuprador. Numa cena em que ambos estão sentados lado a lado no teatro por exemplo, o espetáculo não é filmado e dá lugar ao rosto de ambos. O de Martin envolto em culpa e o de Janne num mal-estar que só é refletido em suas atitudes posteriores.

As longas conversas com a mãe mostram que Janne nunca se impôs em situações adversas, sempre aceitando aquilo que lhe é impelido. Uma simples cena numa lanchonete, onde ela recebe o lanche diferente do que pediu sem contestar, deixa claro que não existe uma autovalorização de suas opiniões, algo que ecoa em sua vida profissional ao não acreditar em sua própria capacidade. A sutileza em abordar tais temas serve como uma espécie de metalinguagem, já que de forma honesta Eva quer que o espectador se sinta incomodado igual sua protagonista no decorrer do filme. Os longos silêncios são propositais, criados para que se pense que o assunto é atual e está bem mais presente do que imaginamos.

Na mesma cena anterior, a mãe de Janne afirma: “não é não”. E se tudo que ocorre após o “não” é estupro, “Está Tudo Certo” retrata a vida de tantas mulheres que só depois de um longo tempo vão denunciar seus agressores, pois vivem num sistema criado para não acreditar nelas. Mostrando que o estuprador pode ser qualquer um, inclusive alguém do seu círculo social, a obra utiliza do silêncio para retratar que por mais que pareça, nada está tão certo.

Tiago Soares
@rapadura

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