Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 14 de junho de 2019

Dor e Glória (2019): uma mensagem de amor à arte

Pedro Almodóvar combina emoção, nostalgia, sensibilidade, melancolia, ternura e beleza estética em uma narrativa que valoriza o poder transformador da arte.

Alguns diretores imprimem sua marca autoral muito claramente em suas obras, evocando sentimentos, atmosfera e ambientação passíveis de reconhecimento imediato pelo público. Pedro Almodóvar (“Julieta”) é um deles, usando cores fortes e complementares, personagens imersos no drama e na comédia e emoções intensamente latinas. Os ingredientes clássicos do diretor são trabalhados na receita coesa e carinhosamente melancólica de “Dor e Glória“.

O estilo de Almodóvar compõe uma história dividida nas linhas temporais da infância e do presente do cineasta Salvador Mallo (Antonio Banderas, “A Vida em Si”). Ele está depressivo e em declínio na carreira, não conseguindo filmar há algum tempo e sofrendo com dores físicas e emocionais crônicas. Quando é chamado para participar de uma sessão especial em homenagem ao seu filme “Sabor”, relembra e reencontra escolhas e passagens de sua vida que o fazem lidar novamente com questões do passado: a relação com a mãe Jacinta (Penélope Cruz, “Todos Já Sabem”), o primeiro amor maduro e a paixão pela escrita e pelo cinema.

As duas linhas temporais se encontram, dialogam, se contradizem, se fundem e projetam novas possibilidades para o futuro a partir das lembranças do protagonista. Desse encontro, surge a vida atual de Salvador: ele sofre com dores nas costas, na cabeça e de várias doenças como a depressão; se ausenta do trabalho por três anos por não conseguir aguentar sua sofrida condição; enfrenta uma rotina infeliz e monótona em seu apartamento, tomando os remédios e vivenciando suas angústias; usa heroína para suportar as dores; e mantém sua veia artística, apesar de suas limitações, graças aos textos que escreve e guarda no computador. A solidão, a tristeza e o abatimento do personagem são transmitidos pela magnética atuação de Antonio Banderas, que capta o foco da câmera continuamente através dos pequenos gestos de uma postura corporal rígida decorrente dos problemas na coluna e olhares expressivos da infelicidade, da ternura e da frustração sentidas diante do trabalho, da mãe e do antigo amor.

Enquanto isso, o passado de Salvador é construído de maneira mais prazerosa, tendo uma musicalidade e uma energia passional características dos trabalhos de Almodóvar graças aos vínculos emocionais entre o protagonista e sua mãe e às sequências envolvendo músicas em um riacho e em um seminário religioso. Nesse período, a infância dele era pobre e vivida, principalmente, em uma “caverna” de um vilarejo humilde, distante do pai militar que passava pouco tempo em casa, e marcada por relações oscilantes com a mãe, uma mulher independente, forte, severa e ainda assim preocupada com o filho. Tais passagens aparecem em flashbacks, cujos grandes méritos são a performance eficiente e atenta às nuances de Penélope Cruz e o carisma do estreante Asier Flores, uma criança que conserva o olhar esperançoso e otimista apesar dos problemas da vida.

Não só as situações criadas pelo roteiro mostram as diferenças entre passado e presente, mas também o sempre belo trabalho de concepção visual de Almodóvar. A nostalgia, a pureza e a pobreza da infância do protagonista aparecem na trilha sonora suave composta por notas pausadas de um piano e também no design da “caverna” onde morou com as paredes de um aspecto primitivo e o teto vedado por grades que separa seus moradores do ambiente externo. Já na vida adulta, a melancolia é indicada pela trilha sonora composta por notas tensionadas de piano seguindo um ritmo incômodo e por planos mais fechados que se concentra nos personagens e explora menos os cenários. A construção estética ainda se beneficia pelo costumeiro jogo de cores do diretor, que contrasta o desânimo de Salvador com as cores azul, amarelo (ou laranja) e vermelho se complementando com uma vivacidade que representa a beleza da arte mesmo em contextos adversos.

A narrativa passeia pelas diferentes linhas temporais apresentando como o artista mudou de uma criança espontânea, carismática e cheia de vida para um homem solitário, desgastado pelo tempo, mas ainda admirador da arte. Para isso, o público é convidado a mergulhar em sua jornada e conhecer as diferentes questões que preencheram sua vida: as brigas e reconciliações com o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia, “Llueven Vacas”), com quem trabalhou em seu filme “Sabor” e lhe ofereceu heroína; a paixão por distintas expressões artísticas desde a infância, como a escrita e o cinema; o carinho mesclado com frustração das feridas não cicatrizadas vindos do reencontro com o homem que amou no passado; a descoberta do primeiro desejo sexual de modo inesperado e desconhecido por ele; e a relação conturbada com a mãe, atravessando momentos de amor, cuidado e ressentimento quando ela estava próxima da morte. As vivências atuais de Salvador fazem ressurgir suas lembranças abrupta ou sutilmente, por exemplo, através do paralelismo entre a cena em que nada em uma piscina e relembra a mãe e as amigas cantando em um riacho.

É a partir de tantas demonstrações de sua sensibilidade peculiar que Pedro Almodóvar constrói uma história autobiográfica ficcional que se comunica com o público em geral, pois entrelaça a inspiração artística e as experiências que formam e marcam os indivíduos, positivamente ou não. Nada mais significativo do que encerrar “Dor e Glória” com uma cena que estimula, ao menos, duas interpretações, uma delas metalinguística sobre o fazer cinematográfico e outra emocional sobre a fusão de presente e passado. Qualquer que seja a interpretação construída, ela fecha com chave de ouro uma mensagem de amor à arte.

 

Ygor Pires
@YgorPiresM

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