Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 12 de junho de 2019

A Lenda de Golem (2018): onde está a monstruosidade?

Filme não acerta no equilíbrio entre terror e drama, mas acerta na construção de mundo e oferece oportunidades para importantes discussões.

Baseado numa lenda do folclore judaico, “A Lenda de Golem” conta a história de Hanna (Hani Furstenberg, “Assassinato no Mississipi”), uma mulher do século XVII que mora numa comunidade onde a religião é seguida com afinco pelos moradores. Situado na Lituânia, a produção israelense explora temas como maternidade, luto, controle e a opressão com uma roupagem de filme de terror.

O filme se mostra muito interessante como estudo social, principalmente como retrato da época em que se passa. Há vários pontos instigantes que levam o longa a funcionar em certo nível, como na representação do que era ser mulher naquela época, que espelham discussões ainda em vigor no século XXI. Hanna, traumatizada pela perda do filho pequeno, faz de tudo para não engravidar novamente, o que a torna inválida aos olhos da comunidade. Outro ponto no qual a obra acerta ao explorar a época é a relação entre os religiosos e os gentios, ilustrando a ignorância científica e a crença no místico quando o antagonista Vladimir (Alexey Tritenko) invade a vila e ameaça todos de morte caso eles não removam o feitiço que crê ter sido posto em sua filha pelos judeus para deixá-la doente, quando na verdade se trata da peste negra.

O longa acerta também ao fugir do maniqueísmo. Sim, há o machismo da época, mas personagens como o marido de Hanna, Benjamin (Ishai Golan), sofre com a reprovação da comunidade a sua esposa e fielmente crê que é dever da mulher gerar filhos, mas está longe de ser violento e autoritário, chegando a ajudar a esposa a se esconder embaixo do piso para que possa acompanhar as sessões do rabino e, enfim, aprender. A protagonista, aliás, é sedenta por aprender, e mostrá-la como uma pessoa em busca de conhecimento que lhe é negado por seu gênero funciona não só como construção da personagem (que busca descobrir como criar um golem), mas também é um espelho da época.

A abordagem que remete a figura do monstro de Frankenstein é outro acerto do filme, que traz a criatura desprovida de emoções, mas conectada de alguma forma a sua criadora. Até nas roupas com costuras grandes pode-se notar homenagens.

Infelizmente, o roteiro escorrega num outro importante tema que tenta abordar, que é o da maternidade. Se acerta em cheio na construção social de mundo e propõe discussões instigantes e complexas, ele erra o alvo ao tentar mostrar a aproximação da protagonista com a criatura, que assume a forma de um garoto da mesma idade que seu filho tinha quando faleceu. Faltam motivos maiores do que apenas a aparência similar, e há uma cena onde os dois se conectam que parece apenas feitiçaria ao invés de sentimentos críveis. Com isso, a conclusão do arco de luto de Hanna resulta numa sequência que carece de peso.

Quanto ao terror em si, os diretores Doron e Yoav Paz (“Jerusalém”) evitam exibir o monstro ativamente matando pessoas, os golpes são escondidos por cortes e mal o vemos se mexer. Em contrapartida, há momentos em que ele se vale de telecinese para explodir cabeças, e aí o CGI não consegue convencer, nem mesmo nos exagerados jorros de sangue. Não há muito da criatura em ação no longa e, quando ela finalmente mostra o que pode fazer, fica a sensação de que faltou um pouco mais para satisfazer fãs do gênero.

A direção, aliás, é inconstante. Começa com um flashback expositivo e desnecessário, mas tem êxito em apresentar o golem aos poucos, com alguns planos-detalhe, o que vai gerando uma boa criação de tensão no espectador. É uma pena que a tensão não dure tanto após a revelação de que é um garoto, pois o longa investe mais no drama de época do que no terror. Não ajuda a trilha sonora parecer ser feita para um épico de fantasia também.

Um longa que gera interessantes discussões sobre monstruosidades e o que, de fato, é um monstro, “A Lenda de Golem” tem um bom elenco trazendo à vida uma sociedade crível e historicamente relevante de ser estudada, mas escorrega no principal ponto da jornada de sua protagonista, além de ter os elementos de terror bastante desequilibrados.

Bruno Passos
@passosnerds

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