Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 10 de junho de 2019

Chernobyl (HBO, 1ª Temporada): o custo da mentira [SÉRIE]

Com apenas cinco episódios, produção se notabiliza ao mostrar os dramas pessoais com a negligência estatal por trás de um dos maiores acidentes nucleares da história.

Em 2015, a bielorrussa Svetlana Alexijevich foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto da sua obra. O livro “Vozes de Tchernóbil”, publicado originalmente em 1997 (no Brasil foi lançado em 2016), narra o impacto humano causado pelo trágico acidente nuclear a partir de informações colhidas pela experiente jornalista após dezenas de entrevistas. Na produção da HBOChernobyl”, seu criador Craig Mazin (roteirista de vários filmes em Hollywood, como “O Caçador e a Rainha de Gelo” e “Se Beber, Não Case! Parte II”) se aproveita do livro de Alexijevich para construir com detalhes, tanto na esfera humana quanto na política, as nuances responsáveis por uma quase catástrofe mundial em 1986. A forma como essa história é contada impressiona.

No dia 26 de abril de 1986 uma explosão atinge a usina nuclear de Chernobyl assustando os moradores da cidade de Pripyat, localizada no norte da Ucrânia, país até então membro da União Soviética (URSS). Tratado inicialmente como um incêndio, o problema logo é relatado para Moscou como um acidente de pequenas proporções, já que a medição de radiação era baixa. Ledo engano. Mais tarde se descobrirá que a explosão no reator 4 liberou uma quantidade gigantesca de radiação na atmosfera, essa já em deslocamento pelo ar, sendo absorvida pela população da região e, especialmente, por bombeiros e funcionários da usina perto do reator agora exposto.

Em Moscou, coube a Valery Legasov (Jarad Harris, da série “Mad Men”), um físico especializado em energia nuclear, mostrar que o problema era bem maior do que o relatado. Ele alerta a alta cúpula do partido socialista sobre as possibilidades reais do acidente e acaba enviado para Pripyat com o vice-presidente do Conselho de Ministros da União Soviética, Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård, “Mamma Mia! Lá Vamos Nós de Novo”), para avaliar o problema mais de perto. O trabalho da dupla ganha a contribuição da também cientista Ulana Khomyuk (Emily Watson, “Kingsman: O Círculo Dourado”), incumbida de descobrir os motivos do incidente.

Reunir todos esses elementos de maneira coerente para serem contados em um show de cinco episódios é um grande desafio, algo superado de maneira notável. Craig Mazin amarra a história impingindo tensão para contar detalhes sobre um caso conhecido, mas intrigante. Cada linha de diálogo tem importância, contribuindo para sabermos como foi possível isso acontecer. Em sua cena inicial, vemos o diretor da usina de Chernobyl, Anatoly Dyatlov (Paul Ritter, “Harry Porter e o Enigma do Príncipe”), um prepotente chefe interessado apenas em ter suas ordens cumpridas, incrédulo com a explosão do seu reator. Para ele o acidente seria impossível com a tecnologia soviética, mesmo vendo seus camaradas sofrendo os primeiros efeitos da radiação.

O principal motivo por tornar a série da HBO tão bem executada é a forma como as dimensões macro e micro são conduzidas. Na esfera maior, em um ótimo último episódio, conhecemos segundo a segundo os motivos do acidente, como a imposição de metas de produção de energia (impedindo a realização de um teste necessário para a segurança do sistema), a burocracia da URSS e sua cultura de promoções entre seus membros, incentivando o crescimento na hierarquia interna do partido acima de qualquer questão de segurança, e a Guerra Fria, com a república comunista tentando de todas as maneiras evitar que o mundo descobrisse sua tragédia nuclear.

Usando como base o livro de Svetlana Alexijevich citado no começo desse texto, Mazin consegue nos conectar com os personagens reais por trás dos acontecimentos. Dentre eles, a história mais impactante foi a de Lyudmilla Ignatenko (Jessie Buckley, da série “Taboo”), que sofre duplamente ao perder lentamente seu marido, bombeiro integrante da primeira equipe a chegar no reator em chamas, diretamente em contato com a radiação em seu nível mais alto, e o filho, nascido depois do acidente, mas exposto ao mesmo mal contraído pelo pai.

Como explicado por Craig em uma série de cinco podcasts produzidos pela HBO em parceria com a NPR (National Public Radio), o importante na história não foi simplesmente mostrar os russos como vilões. Ao contrário, depois de descoberta a questão, lideranças políticas, exército e a população se sacrificaram para corrigir todos os problemas encontrados em Chernobyl. Desde os mineiros recrutados para cavar embaixo do reator e evitar que o derretimento da estrutura contaminasse o lençol freático ucraniano, ou do jovem recém ingressado no exército com a difícil missão de matar animais de estimação contaminados pela energia nuclear, ou os liquidadores, com apenas 90 segundos para retirar material radioativo do telhado da usina, todos foram retratados na série como heróis. O impacto da tragédia foi tão grande, inclusive financeiro, que o famoso líder da URSS na época, Mikhail Gorbatchov (aqui interpretado por David Dencik, “Boneco de Neve”), citou em uma entrevista de 2006 o acidente como um dos motivos para o fim da União Soviética, ocorrido em 1991.

A principal mensagem trazida pela série diz respeito aos custos que uma mentira pode causar, principalmente sobre vidas humanas. Quando o Estado, no caso soviético, uma estrutura que não se questiona e não se desobedece, a negligência pode ser fatal para milhares de pessoas como aconteceu na Ucrânia. Estamos seguros e podemos confiar em nossos governantes? O desastre em Chernobyl é um alerta do passado e, segundo Craig Mazin, para o futuro.

Filipe Scotti
@filipescotti

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