Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 24 de maio de 2019

Lucifer (Netflix, 4ª Temporada): simpatia pelo diabo

A grande redução de 26 para 10 episódios praticamente anula a enrolação que era comum à série e dá espaços para seus atores trabalharem, resultando numa temporada enxuta, charmosa e divertida.

Adaptada dos quadrinhos de mesmo nome do selo Vertigo da DC, “Lucifer” foi cancelada pela Fox após três temporadas, o que deixou os fãs em polvorosa devido ao final inconclusivo e chocante que trouxe um momento bastante aguardado pelos espectadores. Com o apelo popular, a Netflix veio ao resgate do elegante tinhoso e trouxe uma nova temporada, mais enxuta e carregada de charme.

Apesar da terceira temporada ter terminado num ótimo cliffhanger, ela teve tudo o que uma série procedural tem de ruim: da contínua repetição de estruturas narrativas (a dupla resolvendo o “caso da semana”), à sensação de que os personagens colocaram seu desenvolvimento em pausa. “Lucifer” havia se tornado um produto que só possuía elementos importantes para a trama no início e no fim de suas temporadas, com a maioria dos episódios servindo apenas para grandes encheções de linguiça.

O inchado número de episódios (26) contribuía para a enrolação, e aqui está a grande melhoria da nova temporada: apenas 10 episódios. Com a drástica redução, 90% da barriga narrativa foi embora e cada episódio dá a sensação de que os personagens estão crescendo, aprendendo, indo para algum lugar. É um baita alívio.

Com o desenvolvimento dos personagens tendo espaço, os atores podem mostrar mais serviço. E aí fica claro o que conquista tantos fãs nesta série, pois o carisma do elenco é imenso. Todos parecem entender e abraçar a proposta absurda e divertida da obra, que nunca se leva a sério demais. E há de se destacar alguns arcos aqui, como o de Amenadiel (D.B. Woodside, “Segurança de Shopping 2”) que se vê cara a cara com a violência policial contra negros e, pela primeira vez, precisa lidar com racismo, ao mesmo tempo que procura entender um novo papel familiar. E também o de Mazikeen (Lesley-Ann Brandt, “Mergulhando Fundo”), que finalmente tem sua camada emotiva explorada com algum peso, e pode se desprender da figura monotônica de sexy badass.

A dupla principal continua sendo o fio condutor da série, mas também representa um de seus maiores problemas, que é o de ter a contínua tensão sexual entre duas pessoas que claramente gostam uma da outra, mas que tem um roteiro que faz de tudo para que elas não fiquem, enfim, juntas. Por enquanto funciona, mas até quando é possível continuar com a mesma trama sem que se torne enfadonha? O grande desafio de “Lucifer” é, um dia, fazer essa história seguir em frente e ainda assim manter o casal narrativamente interessante. Nesta temporada mesmo já se percebe sinais de fadiga dessa trama em Chloe (Lauren German, “O Abrigo”), que parece ter esgotado as opções do que pode ser feito com a personagem.

A nova personagem introduzida no lore da série é Eva (Inbar Lavi, “O Último Desejo”), que chega trazendo interessantes (e relevantes) questionamentos sobre seu papel como mulher. Ela foi criada para ser a esposa de alguém, um papel imposto a ela, mas era isso que ela realmente queria? Tal discussão podia ter sido melhor tocada, mas logo a personagem se transforma em vários clichês na sua relação romântica. Eva mais está lá para que a história de outros (como Mazikeen e Lucifer) evoluam.

Entretanto, quem carrega essa série nas costas é Tom Ellis (“Megarrromântico”). Desde a primeira temporada ele esbanja charme, elegância, abundância de carisma e parece se divertir horrores no papel. Nesta temporada, com menos episódios e enrolação, Ellis tem chances de explorar melhor seu diabólico personagem, que precisa lidar com o fato de Chloe agora saber quem ele é, ao mesmo tempo que busca se entender com uma mistura de ingenuidade e honestidade. Vê-lo chegar a um momento-chave em sua jornada numa de suas consultas com a Dra. Linda (Rachel Harris – “Irmão Natureza”) é catártico para quem o acompanha desde o início e realmente dá para sentir que ele está evoluindo como personagem.

Claro que não é uma série destinada a ser premiada com Emmys e Globos de Ouro, e há algumas forçadas de barra convencionais demais para fazer a história andar, além de alguns personagens terem conflitos mal desenvolvidos. Sem contar com a indicação de um romance que aparece e some do mais absoluto nada, sem nenhuma consequência narrativa real.

De qualquer forma, “Lucifer” é divertido, exagerado e cheio de charme. Sim, é graças a Tom Ellis que a série mereceu ser salva; mas com um elenco que não tem medo de brincar com o brega e com uma bem-vinda redução no número de episódios, o capiroto mais cativante das telas ainda tem muitos favores a conceder e fãs a conquistar.

Bruno Passos
@passosnerds

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