Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de maio de 2019

Heróis do Rio de Janeiro (2019): a guerra de todos contra todos

Documentário encomendado pelos 120 anos da Policia Militar do Rio de Janeiro revela a dura realidade dos policiais militares, mas escorrega no panfletismo ideológico.

Em 13 de maio de 2019, na ocasião dos 120 anos da Polícia Militar, foi lançado o documentário “Heróis do Rio de Janeiro“, em cerimônia com a presença do então ministro da Justiça, Sergio Moro, do governador carioca Wilson Witzel e do senador Flávio Bolsonaro. O filme busca retratar o crítico estado das forças policiais frente ao escalonamento da violência pública, a “guerra assimétrica” segundo definição da CIA norte-americana apresentada no início da produção, situação em que os bandidos estão em vantagem sobre as forças de segurança do Estado. Ainda no início do longa, assinado por Mia Carvalho e pela produtora 9Gatos, pede-se ao espectador que deixe de lado as ideologias em prol da conscientização de um problema coletivo. Ele mesmo, porém, não cumpre com essa imparcialidade ideológica e pende para o mais raso discurso de direita, hoje em moda.

O roteiro se baseia nas importantes pesquisas realizadas pela Comissão de Análise da Vitimização Policial do estado em questão e revela dados aterradores do crescimento da violência. A partir das falas dos entrevistados, a maioria membros da hierarquia policial, mas também procuradores de Justiça, busca-se expor o outro lado da guerra urbana que hoje assola a região, destacando casos comoventes de oficiais que perderam a perna, parte do crânio ou até mesmo a vida nos confrontos, além de outros tantos com traumas psicológicos e emocionais.

A abordagem desse sofrimento policial só peca ao demonizar de forma simplista o outro lado da trincheira, evitando encarar o duro fato de que os envolvidos com o crime organizado, o tráfico de drogas ou as milícias pela cidade não deixam de ser pessoas, cidadãos dessa mesma pátria – quer gostemos disso ou não. Reforça-se, assim, o antagonismo improdutivo entre bandido/mocinho, através de um discurso que rebate incisivamente as pesquisas acadêmicas na área de segurança e a postura das ONGs de direitos humanos contrárias às políticas de encarceramento. Infelizmente, dá-se muito espaço para teorias psico-jurídicas sobre a origem do comportamento criminoso – beirando o achismo das antigas teorias criminais da frenologia e da antropometria – e pouco se explora (talvez por receio de rechaço) as nuances que complexificam essa questão em um país tão intricado como o Brasil.

Evita-se temas, por exemplo, como o da corrupção policial, ou o das milícias, grupos formados geralmente por ex-policiais, como uma força paramilitar e paralela ao Estado que domina certos territórios da cidade. Nada se aborda, ainda, do envolvimento dos políticos com as milícias, como hoje começa a se relevar pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (cujos membros podem ser tidos também como heróis da cidade) e a conjunção dessas distintas forças criminosas (todas igualmente nocivas à sociedade) no apagamento de figuras de oposição, como a vereadora Marielle Franco em 2018.

Pior ainda, o filme se deixa levar progressivamente pelo discurso fanático e fabulatório do escritor Olavo de Carvalho (sobre o qual outro filme ideológico, O Jardim das Aflições, já foi questionado aqui), oferecendo-lhe a terceira parte do longa, intitulada “Revolução Cultural”, em que abraça suas teorias ideológicas de guerra cultural contra o tal “marxismo cultural”. Associa, assim, à criminalidade uma série de outras variáveis de diversidade da sociedade brasileira, desrespeitadas pelo filósofo, sempre a partir de seu método (anti-método) da agressão verbal, com termos como “os gayzistas” ou ainda “as feministas e os negros”, mas vazias de conteúdo. O que se evidencia com isso, ao contrário, é o escrachado e inculto populismo de direita, que apela para o ruído e a violência (simbólica, verbal) para, veja só, criticar o estado de insegurança que hoje vivemos. Faz-se a guerra para evitar a guerra.

Sorte da narrativa que vez ou outra nota-se maior sobriedade no pensamento dos depoentes, como quando um dos comandantes da PM afirma: “a resposta sangrenta nunca é a melhor. Fica o trauma para toda a cidade”. É importante ver ressaltado que, encarando a verdade (“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, diz o versículo bíblico) de nossas contradições e desigualdades históricas, o Brasil hoje deve olhar para si e reconhecer que todos nós, “bandidos e mocinhos”, viemos da mesma sociedade, somos produto dela. Mudar “tudo isso aí” é um projeto coletivo e deve, portanto, envolver todos.

Expor a vulnerabilidade dos policiais nas situações de confronto é, de fato, um ato de coragem. O documentário, assim, é comovente em seus relatos, embora raso em sua tentativa de análise, e ainda que sirva como peça de propaganda para levantar o moral da força, hoje pouco prestigiada entre a população, é um retrato urgente de um drama brasileiro que precisa encontrar um caminho de paz. Como na expressão: O Brasil tem um longo passado pela frente.

Vinícius Volcof
@volcof

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