Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de maio de 2019

Gladiador (2000): ecoando na eternidade [CLÁSSICO]

Obstáculos e imprevistos atrapalham o roteiro, que perde a qualidade conforme o filme avança. Entretanto, Ridley Scott e sua equipe fazem uma construção magnífica de mundo e de personagens que, com fortes interpretações, entregam um memorável épico.

“O coração pulsante de Roma não é o mármore do Senado, é a areia do Coliseu.” Essa fala dita pelo senador Gracchus (Derek Jacobi, “Tomb Raider: A Origem”) em “Gladiador” ilustra bem não só a sociedade do império romano, mas envolve toda a trama do longa que conta a história do general Maximus (Russell Crowe, “Boy Erased: Uma Verdade Anulada”), servo leal do imperador Marco Aurélio (Richard Harris, “Harry Potter e a Câmara Secreta”) que decide passar seus poderes para o militar no evento de sua vindoura morte. A manobra política visa transformar Roma em uma república e devolvê-la para o povo. Commodus (Joaquin Phoenix, “Coringa”), filho do imperador, não recebe bem a notícia, comete patricídio e ordena a morte de Maximus e sua família. Ao sobreviver ao atentado, o protagonista se lança numa jornada de vingança e redenção.

Inspirado pela pintura “Police Verso” de Jean-Léon Gérôme, de 1872, o diretor Ridley Scott (“Todo o Dinheiro do Mundo”) foca o filme ao redor do Coliseu e sua importância na sociedade romana ilustrando a política de “pão e circo” de manter o povo distraído e, assim, evitar revoltas. Para mergulhar nessa realidade, Scott valoriza a mística da gigantesca construção que era o Coliseu para a época. Ele é revelado com uma tomada aérea que fornece uma simples comparação do tamanho da edificação com o de outros prédios da cidade. É uma diferença massiva que ilustra o núcleo ao redor do qual aquela sociedade girava. Para tal, foi construída uma réplica do anfiteatro para as filmagens e, posteriormente, imagens geradas por computador foram aplicadas para que ele parecesse ainda maior. O resultado impressiona.

O império romano era vasto e se espalhou por todo o Mediterrâneo. Isso resultou numa pluralidade de idiomas e culturas representadas no filme por meio de ótimas locações e figurinos, pela presença de animais de diferentes locais do mundo e até pelo fato do protagonista nunca ter pisado em Roma em si. No entanto, a Roma do filme é extremamente romantizada. Tratada como um potencial utópico, a abordagem acaba ficando um pouco mais maniqueísta do que seria o ideal, como o próprio Maximus diz “Roma é a luz”.

Apesar disso, essa visão maniqueísta não é um grande problema do roteiro, que só tinha 32 páginas prontas no início das filmagens (!) e teve até o próprio Crowe reescrevendo algumas cenas. Para dificultar mais ainda as coisas, Oliver Reed (“Os Três Mosqueteiros”), que interpretou um personagem chave, faleceu durante as filmagens e todo o ato final precisou ser reescrito às pressas. Realmente, é quando se nota mais falhas na fluidez da trama com conveniências narrativas forçadas. Com todos esses percalços, é de se admirar que o produto final tenha saído com qualidade acima da média. Há, entretanto, uma versão estendida que amarra várias pontas soltas deixadas.

Felizmente, na principal jornada do filme, a do protagonista, o roteiro flui bem e Scott faz uso de boas metáforas visuais para contar a história do general. O longa abre com a mão de Maximus acariciando trigo, com uma fotografia amarela e calorosa que já nos conta que ele é, no seu íntimo, um homem do campo. Há então um corte brusco para onde ele se encontra naquele momento, longe de casa e prestes a liderar seu exército para conquistar mais terras para Roma. A fotografia muda para um cinza melancólico acompanhada por uma trilha fúnebre que representam o peso de seu serviço. Mesmo sempre leal, Maximus só se sente completo vivendo como fazendeiro e com sua família. Durante toda essa sequência, Scott brinca com a linguagem visual para revelar a alma de seu protagonista, a dedicação ao dever, a inspiração que causa nos subordinados, a saudade de casa. É narrativamente brilhante.

A trilha sonora de Hans Zimmer (“Blade Runner 2049”), aliás, é fantástica. Do mórbido ao determinado, há composições aqui que remetem a algo visceral, ao cerne do que compõe o homem. Há um tema para o protagonista que vem com diferentes intensidades ao longo de sua jornada, pontuando momentos-chave.

O antagonista Commodus também é magistralmente construído. Birrento e cheio de sentimentos mal resolvidos em relação ao pai, Joaquin Phoenix entrega um homem corroído por inveja e sedento por poder, mas que também é um garotinho que só quer o amor paterno. Há inúmeras camadas ali que o ator entrega auxiliado por alguns bons diálogos e ótima composição de cenas. Veja a cena em que ele revela ao pai que sabe que nunca foi o que ele quis que o filho fosse, com a estátua do imperador a suas costas, ilustrando a sombra de uma figura sobre a outra.

“Gladiador” tem um roteiro que começa muito forte e vai decaindo com o desenrolar do longa, mas consegue entregar uma ótima jornada do herói, que vai da vingança à redenção. Ao se valer de várias metáforas para discorrer sobre os sentimentos do protagonista, o filme procura mostrar em imagens ao invés de expor em diálogos, o que é excelente para ter efeito na alma dos espectadores. Há bom uso de foreshadowing (como na maneira em que a famosa fala do início “o que fazemos na vida ecoa na eternidade” retorna mais tarde), de rituais que dizem muito sobre o protagonista (como Maximus esfregar terra nas mãos como forma de se conectar com o natural, com seu verdadeiro ser) e de bom uso de coadjuvantes para guiar a trama, em especial Connie Nielsen (“Mulher-Maravilha”), que entrega uma interpretação forte de uma mulher que quer o que acha certo, mas precisa pisar em ovos para proteger o filho.

Apesar dos empecilhos com o roteiro, o filme é deslumbrante e marcante. Ridley Scott e sua equipe fizeram um trabalho admirável de trazer a sociedade romana à vida numa trama com várias camadas que ainda conta com a interpretação intensa de Russell Crowe. Um épico atemporal com uma inspiradora história como só ótimas jornadas do herói podem oferecer. “Gladiador” ecoará na eternidade.

Bruno Passos
@passosnerds

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