Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 31 de março de 2019

Pastor Cláudio (2015): o Caronte da ditadura brasileira

Relato em primeira pessoa de um matador do Estado brasileiro na época da Ditadura reforça a importância de um país assumir os erros do passado e de um povo asssumir a defesa de uma democracia.

Gravado em 2015, na época dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – incumbida de investigar crimes e violações de direitos cometidos pelo Estado brasileiro em momentos de excessos, “Pastor Claudio” é um documentário estarrecedor por sua simplicidade objetiva. Dirigido por Beth Formagginni, ele se dá como uma conversa entre o ex-delegado do Dops (Departamento da Ordem Política e Social) do Espírito Santos e o ativista dos Direitos Humanos Eduardo Passos, em que Cláudio relata, a partir de imagens projetadas sobre um fundo preto, cada caso de tortura, assassinato e ocultação de corpos de pelo menos 12 militantes de esquerda brasileiros, a maioria membros do Partido Comunista, entre os anos 1970 e 80. As declarações do ex-agente da Ditadura não são novas e já haviam sido descritas no livro lançado pelo próprio Cláudio, hoje pastor da Assembleia de Deus, alguns anos antes, mas ajudam a lançar luz sobre um período ainda sombrio de nossa História recente.

Essa produção nacional tem como principal trunfo registrar, para o Brasil de hoje e à posteridade, relatos sólidos e opinativos de quem participou do pior momento da vida política nacional, à exemplo do também excelente “Soldados do Araguaia“, de Belisário França, que dá voz aos soldados usados para fazer o trabalho sujo do Regime, na caça à Guerrilha do Araguaia. A Ditadura Militar brasileira, que completa em 1º de Abril de 2019 55 anos desde o golpe que depôs o presidente João Goulart, ainda é um ponto opaco na biografia nacional, em que sobram disputas narrativas sobre a verdade. A verdade, se é que ela existe, pode ser um ponto inatingível de um passado já distante, mas uma maior clareza sobre o que aconteceu no Brasil daqueles anos talvez nos sirva para ao menos pensar o que não queremos que se repita no Brasil futuro.

O senhor de olhar caído e gestos contidos é objetivo, claro e seco ao relatar como recebia as incumbências para assassinar os inimigos do regime militar, mesmo que diga que sua memória já esteja “cansada pelo velhice”. Assim, como agente do Espírito Santo, ele era mandado por todo o Brasil para executar militantes de esquerda, além de ser o responsável por buscar os corpos de torturados já sucumbidos, assassinados na tenebrosa Casa da Morte de Petrópolis, Rio de Janeiro, um dos centros de tortura da Ditadura, e incinerá-los nos fogões de uma fazenda emprestada por um “civil patriota”, no interior de São Paulo.

O relato de Cláudio, intercalado com imagens históricas das vítimas do terror de Estado e relatos de seus familiares, muitos sem nunca encontrar os restos mortais de seus entes queridos, pode ser tido como um exemplo de que o arrependimento mata, mas mata retroativamente: primeiro vem o discurso de ódio, o antagonismo do diferente, a prisão, a tortura, o assassinato e, enfim, o forno que transforma tudo em pó. Hoje, Claudio diz “só querer paz”.

A história brasileira é cheia desses pontos de tensão, especiais como a de nenhum outro país, desde o descobrimento/invasão portuguesa até a Ditadura, passando pelo holocausto indígena e escravidão negra que erigiram esse país. Quanto mais pontos de vista sobre esse fato histórico, mais fácil pode ser para um país, coletivamente, enfrentar seus demônios do passado e aprimorar suas regras sociais e políticas de agora. Negá-los, mesmo diante de fontes incontestes de quem participou dos crimes estatais, como Claudio ou os soldados do Exército enviados ao Araguaia, não é apenas fazer pouco da dor de muitos, como também é uma contribuição negativa para a vida de um país que precisa superar seus erros e dificuldades históricas para poder seguir um caminho virtuoso. “Pastor Claudio”, nesse sentido, é um documentário duro, que dói e incomoda quem tenha o mínimo de empatia pelo próximo – e para isso não precisa ser comunista ou de esquerda para solidarizar-se com as vítimas de um governo opressivo -, mas também é fundamental para que a nossa democracia de hoje continue pungente e verdadeiramente democrática.

Vinícius Volcof
@volcof

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