Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 26 de março de 2018

Soldados do Araguaia (2017): máquina de moer brasileiros

No segundo filme da Trilogia do Silenciamento, iniciada com o premiado "Menino 23", o diretor Belisário Franca continua a empreitada de lançar luz às múltiplas violências que marcaram nossa história.

Apesar da insistente e preocupante negação dos órgãos oficiais até hoje, sabe-se que nos anos 70, ápice da Ditadura Militar, o Exército brasileiro enviou à região do Bico do Papagaio, entre os estados do Tocantins e do Pará, destacamentos militares para combater um grupo de insurgentes escondidos na mata amazônica, na cauda do rio Araguaia, por isso conhecidos como Guerrilha do Araguaia. Sua história é notória por filmes, documentários e livros sobre o assunto. Extensas pesquisas nos permitiram saber mais sobre suas principais figuras, como o mítico líder Osvaldão, além de como o grupo foi montado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e um pouco da dinâmica do treinamento de guerra contra o regime que eles nunca conseguiram efetivar. Pouco se sabia, até agora, sobre os indivíduos do outro lado da trincheira, os soldados das forças nacionais que executaram a expedição em nome da “defesa da pátria” e da “segurança nacional”.

O documentário de Belisário Franca (“Amazônia Eterna”) busca resgatar essa história a partir de extensa pesquisa realizada por Ismael Machado, assumindo, com isso, a posição incômoda de dialogar com um grupo de cabos e soldados rasos que participaram da missão de caça e execução dos 76 guerrilheiros embrenhados entre a floresta amazônica e as cidades a jusante. O longa compõe o segundo filme da Trilogia do Silenciamento, iniciada pelo diretor com o premiado documentário “Menino 23″ (2016), que recuperou a história das vítimas de experimentos eugenistas, inspirados na medicina nazi-fascista de purificação racial, realizados numa fazenda no interior de São Paulo nos anos 30. Mantendo o mesmo tom pesado para um assunto mais uma vez indigesto, porém necessário, esse novo filme repete a coragem de abordar um tema emergente em tempos de intervenção militar no Rio de Janeiro, acusações de uso desmedido de violência policial (sobretudo nas regiões mais pobres, como favelas), e trágicas execuções políticas – e isso pôde ser atestado pelo tom dos comentários que testemunhei em sessão comentada de lançamento do filme, na capital fluminense.

Certamente trata-se de uma das primeiras vezes que testemunhamos o relato dos “inimigos” da democracia. Ou seja, daqueles que fizeram parte das forças repressoras que tomaram conta do país por 21 anos, proibindo eleições gerais, calando as opiniões divergentes, perseguindo, torturando e matando os opositores àquele regime político. Por isso, o filme parece caminhar sempre na corda bamba entre pender para um reacionarismo patriótico que supervalorize o desempenho das funções militares, ou um melodrama de cabeças falantes (o formato documentário mais clássico, que infelizmente é reproduzido aqui) de suas histórias pessoais.

Carecendo de maiores recursos para reconstruir a expedição militar, a saída narrativa é contrapor o chocante relato dos ex-soldados sobre torturas, cabeças e mãos decepadas e acumuladas em sacos, além dos estupros e assassinatos cometidos pelos militares não apenas contra os insurgentes, mas mesmo sobre a população da região, com cenas atuais do treinamento militar de nosso Exército. Embora com algumas limitações, esse encadeamento narrativo produz uma espécie de bolha temporal – como reitera uma das analistas entrevistadas pelo filme – que mistura o passado e o presente, reatualizando uma discussão há 40 anos silenciada sobre o abuso das forças de segurança no Brasil.

Discutir o sobreuso da força estatal pela voz das vítimas é o que os ativistas e as ONGs de direitos humanos fazem há décadas no Brasil (“Cadê o Amarildo?” – é uma das perguntas que ainda ecoam sem resposta oficial), muitas vezes segmentadas em traumas específicos, como o das mulheres, dos/as negros/as e também das vítimas da ditadura. Infelizmente não nos faltam traumas. Contudo, contá-los a partir dos testemunhos dos “feitores”, porém não em tom nostálgico, patriótico e com cheiro de fascismo saudoso, é a novidade que se apresenta aqui. Só assim começamos a entender que a máquina estatal de guerra é um Leviatã que esmaga a todos.

Gradualmente os relatos desses senhores cansados e visivelmente perturbados nos fazem entender que a opressão de um regime antidemocrático recai de forma distinta sobre a cabeça de um povo. Enquanto uns sofriam perseguições por se oporem ao sistema político vigente, outros, sobretudo mais pobres, menos instruídos e habitantes de cidades muito distantes da visibilidade das capitais sudestinas, sofriam com a coerção para que fizessem parte do regime, embora moralmente não concordassem com seus atos. Assim, um dos primeiros depoentes em tela diz com segurança que sim, servira ao Exército brasileiro naquela época, mas que não se orgulha disso. Outro diz ainda que as Forças Armadas não eram local de treinamento militar, mas de tortura. Segue-se aí uma série de relatos de maus tratos e terrores, tanto físicos como psicológicos, a que esses jovens (a maioria abaixo dos 25 anos) foram submetidos, num processo de desumanização característico dos Estados de exceção. Confrontados com esses relatos em primeira pessoa, cheios de uma energia acumulada, amargor e raiva do tom dos depoentes, fica muito difícil sustentar uma opinião de que o Brasil não vivera uma Ditadura – ou pior, de que fora um “Ditabranda”.

Depois da dificuldade inicial de assistir a um filme que mostra o outro lado da história, entendemos que, o que se impôs a estes homens, foi a mesma estrutura opressiva imposta ao resto dos brasileiros. Mas são eles mesmos quem nos fazem o favor de “separar o joio do trigo”, reiterando que existiam companheiros de força que pareciam se regozigar no desempenho de suas macabras funções de caça, tortura e morte dos foragidos. Aos homens retratados aqui, parece ter restado apenas arrependimentos e muitos traumas, manifestos nos tons mais diversos e instáveis, ora com sarcasmo, ora com o extremo luto de pessoas alquebradas.

Atualmente sua luta parece ser pela reparação histórica às insuperáveis consequências dos episódios vividos, que começa pelo reconhecimento oficial de que o Exército Brasileiro, que àquele tempo era também o Estado, pois dominava todas as forças políticas nacionais em um regime de exceção, enviara as tropas à região, na empreitada que ficou conhecida como Vietnã Brasileiro. Até hoje, o Estado nega a existência de tal operação – como a da própria guerrilha -, apagando, assim, o próprio sacrifício e trauma marcantes na biografia desses homens.

Não apenas destruídos pelas marcas de uma guerra que nem era a deles, depois de prestarem seus serviços eles se tornaram invisíveis para um Estado em tese democrático e de direito, que teima em não assumir seus próprios pecados até hoje. Nesse sentido, um dos únicos instrumentos de reparação, ainda que simbólico, para esses meninos violentados, seria Clínica do Testemunho, um projeto liderado por psicólogos que busca oferecer um espaço de desabafo e recuperação mental a esses homens. Infelizmente, o projeto não recebe mais financiamento estatal desde a posse de Michel Temer na presidência.

Lembrando que “uma nação que não conhece sua história, está fadada a repeti-la”, vale a pena ressaltar a importância de um filme como este em ano de eleições gerais. Reatualizar um pensamento militarista como solução aos problemas do Brasil, mostra não apenas um falta de entendimento sobre a estrutura estatal – que hoje coloca as Forças Armadas numa posição muito específica de proteção das fronteiras, e não de gestão pública -, como também é reatualizar a violência simbólica contra milhões de vítimas do regime ditatorial brasileiro entre os anos 60 e 80. Contar suas histórias, seja de militantes comunistas ou de soldados rasos largados na floresta é mostrar, por mais duro que seja, o que o Brasil foi, e consequentemente nos fazer pensar no que o Brasil é atualmente, e no que ele pode ser (no que queremos que ele seja) no futuro.

Vinícius Volcof
@volcof

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