Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 12 de março de 2019

Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava (2018): revisitando nossa história

O documentário de Fernanda Pessoa propõe um olhar diferente sobre as pornochanchadas feitas no Brasil da década de 1970, deixando de lado as visões mais comuns.

Enquanto o Brasil vivia a ditadura civil-militar na década de 1970, o cinema brasileiro produzia um conjunto extenso de obras com características muito semelhantes: comédias eróticas de baixo orçamento e de grande sucesso comercial. Com o passar do tempo, as chamadas pornochanchadas foram alvo de críticas e condenações por estudiosos, cinéfilos ou pelo público casual sob a argumentação de que eram vulgares, alienantes ou depreciativas para a arte nacional. Conhecendo esse pano de fundo histórico, a diretora Fernanda Pessoa (em sua estreia na função) lança o documentário “Histórias Que Nosso Cinema (não) contava” para apresentar perspectiva diferente ao tema.

O filme promove uma releitura sobre a ditadura brasileira através do levantamento de imagens e sons de pornochanchadas produzidas nos anos 1970. Distintas questões próprias daquele período são apresentadas a partir dessas comédias antigas, como as relações entre Estado e sociedade e as percepções sobre os comportamentos sociais. Como a maioria dos documentários faz, a narrativa  expõe e defende uma tese através de uma articulação precisa entre ponto de vista e linguagem cinematográfica: para Fernanda Pessoa, é possível compreender o contexto do país à época e identificar formas de resistência ao governo nas pornochanchadas.

Para desenvolver seu pensamento, a cineasta utiliza imagens de arquivo de modo peculiar: todo o documentário é construído simplesmente encadeando trechos das pornochanchadas, sem entrevistas ou narrações em off  para organizar as ideias que pretende discutir. A proposta se sustenta graças ao montador Luiz Cruz para estabelecer os vínculos entre as imagens exibidas, colocando-as para, literalmente, conversar entre si e criar significados específicos. A montagem apresenta assuntos relacionados à ditadura de maneira explícita ou metafórica, através de referências diretas a acontecimentos e a elementos ou de simbologias críticas a aspectos do nosso passado recente.

Do ponto de vista político, a produção comenta os antecedentes do golpe de 1964 e a própria tomada do poder pelos militares, ao trazer personagens conversando sobre o anticomunismo existente e ao associar a mobilização das Forças Armadas à marcha de uma jovem seminua cercada por crianças pequenas. Em seguida, a narrativa avança cronologicamente para abordar questões subsequentes dentro do regime autoritário brasileiro: o crescimento econômico, a influência norte-americana, a propaganda governamental ufanista, a resistência armada, a repressão e a censura. As passagens e diálogos retirados dessas comédias apontam sempre para uma abordagem satírica do que acontecia no país, como o engano que um censor comete ao liberar um livro simplesmente por ser um escritor norte-americano.

A situação social do Brasil também era comentada, principalmente em relação às pessoas marginalizadas. O desenvolvimento da economia e a posterior recessão vinculados ao Milagre Econômico Brasileiro são mostrados pela perspectiva das camadas populares, que não se beneficiaram concretamente da euforia consumista e especulativa da década. Indivíduos mais pobres saídos das áreas rurais são vistos nas cidades tentando se adaptar a uma nova realidade e enfrentando humilhações e afrontas, assim como negros sofrendo preconceito pela cor da pele. Duas sequências expressam claramente essas condições sociais: a patroa que fica nua em frente ao empregado, dizendo que ele não tem sexo, e o personagem negro que afirma que jamais poderia interpretar Hamlet.

Até mesmo a nudez, o sexo e as drogas, elementos muito criticados nas produções, recebem uma interpretação diferente da documentarista. Eles são tratados como atitudes libertárias de contestação ao conservadorismo comportamental de gerações e de autoridades apegadas a um moralismo tradicional. Dentro da temática, os casos da  mulher e dos homossexuais são trabalhados de forma ambígua pelas pornochanchadas, por vezes parecendo ofensivos e problemáticos, por outras sugerindo liberdade sexual e empoderamento. A sequência em que um casal de empregados faz sexo efusivamente na cama dos empregadores e escutam da patroa “isso é o comunismo” traduz como aquela narrativa cinematográfica combina comportamento e lutas políticas.

Questionamentos podem ser levantados para indagar as razões que levaram os realizadores das comédias eróticas a adotar esse estilo. Ainda que o documentário não se proponha a responder tais questões, é necessário considerar o contexto vigente de supressão de direitos fundamentais para compreender as escolhas estéticas. Tentar driblar a censura através de filmes de teor leve e descompromissado, que aparentem ignorar discussões políticas, e também conquistar a atenção dos espectadores com histórias e narrativas simples são fatores relevantes na equação.

“Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava” se inicia com a apresentação dos vários títulos da pornochanchada distribuídas na década de 1970, porém não se limita a reconstituir obras, muitas vezes, de difícil acesso. O documentário faz outro tipo de resgate: uma passagem importante da história brasileira recente, que ainda impacta fortemente na atualidade, e precisa ser analisada por diferentes olhares e percepções. Tudo isso feito em um processo que reconhece como as comédias eróticas do passado discutem fatos da época ao seu próprio modo, com ambiguidades, contradições, complexidades e potencialidades que permitem revisitar a história.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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