Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 12 de março de 2019

Antes Que Eu Me Esqueça (2018): um belo sabor agridoce

Tendo a sensibilidade como ponto chave da história, "Antes Que Eu Me Esqueça" retrata o Mal de Alzheimer com o cuidado necessário.

Assuntos muito sérios podem levar os profissionais do cinema a uma linha tênue entre o sentimentalismo piegas e o esvaziamento de importância. Por essa divisória complexa transita “Antes Que Eu Me Esqueça“, filme dirigido por Tiago Arakilian (“Os Irmãos Roberto“), ao abordar os efeitos contínuos do Mal de Alzheimer sobre idosos e as difíceis formas de administração da situação pelos familiares. O roteiro enfrenta os riscos da proposta ao enfocar como principal elemento narrativo a jornada do protagonista, concebida com a delicadeza e a humanidade apenas possibilitada pela arte.

O personagem principal é Polidoro (José de Abreu, de “Vidas Partidas“), um senhor de oitenta anos e juiz aposentado. Ele vive sozinho e mal tem contato com seu filho Paulo (Danton Mello, de “Intruso“), um pianista fracassado que trabalha em uma orquestra, não na função desejada. Quando sua filha Bia (Letícia Isnard, de “Simonal“) entra com uma ação judicial para interditá-lo, Polidoro decide investir seu tempo e seu dinheiro em uma boate de striptease. A razão para a pretendida interdição é a perda das faculdades mentais do homem mais velho, que não se lembra de acontecimentos banais, indicativo de uma doença. Por mais que a trama possa parecer muito dramática, a abordagem é mais profunda do que essa aparência sugere porque o tom assume uma dimensão agridoce entre o humor e o drama.

Inicialmente, a obra abraça a comédia tendo como centro narrativo as ações incomuns de Polidoro: assiste a vídeos eróticos no computador, frequenta um clube noturno e, principalmente, decide se tornar proprietário do estabelecimento. O humor não somente é construído pela surpresa de ver homens mais velhos, inclusive os amigos do protagonista, comparecerem ao lugar, mas também as mudanças ocorridas por esse fato. Polidoro é o ponto de referência de transformações na boate ao realizar reformas que mudam seu nome, a música tocada e as performances das dançarinas. Além disso, o sujeito contribui para alterações em outros personagens, muitas vezes de forma bem-humorada: os antigos funcionários do clube são apresentados a uma sofisticação e carga emocional distintas do nível de informalidade a que estavam habituados; a promotora que acompanha o caso judicial, Maria Pia (Mariana Lima, de “O Banquete“), se permite abrir à diversão e às próprias emoções. Após situar o humor, o ponto de virada para o drama é sutil e verossímil, também se relacionando aos motivos que levaram Polidoro à boate.

A transição é feita a partir da relação entre pai e filho. Cada personagem, separadamente, tem seu próprio arco desenvolvido com as atuações de seus intérpretes. Danton Mello encarna Paulo como um homem atormentado pelos rumos indesejados de sua carreira e distante da família, precisando encontrar o que realmente dá sentido à sua vida e preenchendo o vazio interior que carrega. Já José de Abreu vive Polidoro com uma combinação precisa entre a austeridade e o refinamento de um passado imponente como juiz respeitado, por exemplo através dos trejeitos das mãos, e a degradação física e psicológica provocada pela doença, como se percebe pelo olhar perdido, a fala incompreensível e a postura corporal encurvada. Ambos também possuem uma trajetória em conjunto, que envolve frustrações de tempos anteriores e as decisões importantes para o futuro próximo, capaz de conduzir o filme a sequências emocionantes e sensíveis no que se referem aos males da enfermidade e a união necessária para tratá-la.

A força interpretativa dos dois atores principais nem sempre é acompanhada pelo elenco coadjuvante. Os funcionários do clube noturno até são construídos dentro da proposta, em parte, cômica de indivíduos bem resolvidos com as escolhas de suas vidas, e envolvidos, inesperadamente, com outras pessoas sérias e distantes daquele universo. Em relação aos personagens mais próximos de Polidoro, há problemas na composição da filha Bia e da promotora Maria Pia: a primeira tem pouco tempo de tela e, praticamente, só aparece como uma mulher chata de preocupações exageradas, algo que posteriormente não se confirma; já a segunda é construída como uma agente de justiça robótica de tão formal e profissional que demonstra ser, características relacionadas ao seu arco dramático, porém mal dirigidas e que caem na caricatura do vocabulário muito requintado e na caracterização física austera.

O desenvolvimento emocional presente no roteiro e nas atuações de José de Abreu e Danton Mello não é tão contemplado também pela linguagem cinematográfica adotada. A opção de Tiago Arakilian por uma estética discreta que dê mais espaço à direção de atores e ao argumento narrativo acaba enfraquecendo as potencialidades visuais oferecidas pelo cinema. O plano aéreo em que pai e filho são mostrados boiando no mar possui uma beleza poética não encontrada em outros momentos da produção. Nesse sentido, “Antes Que Eu Me Esqueça” desperdiça algumas oportunidades de tornar sua história ainda mais impactante com o uso das técnicas próprias do cinema, o que não pode ser negligenciado por um tipo de arte que também se apoia na construção de imagens e sons. Não é algo que enfraquece a evolução dramática do roteiro, mas é algo que deixa a sensação de poder ter feito um pouco mais.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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