Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O Fotógrafo de Mauthausen (Netflix, 2018): a imagem é poder

Apesar de ter um aspecto singular na comparação com outros filmes da Segunda Guerra Mundial, "O Fotógrafo de Mauthausen" poderia se destacar ainda mais caso não repetisse elementos tradicionais do subgênero.

O tema mais recorrente de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial é a violência sofrida pelos judeus nos campos de concentração. Alguns deles se aprofundam em questões espinhosas, como o dilema entre lutar pela sobrevivência individual fazendo algo benéfico para os nazistas e resistir diretamente à opressão em nome de todos os prisioneiros em “Os Falsários“, enquanto outros se concentram naquele tema costumeiro. “O Fotógrafo de Mauthausen“, nova produção da Netflix, procura um novo olhar para esse tipo de filme, porém passa muito tempo reutilizando fórmulas já conhecidas sem acrescentar algo novo.

A história se concentra no ex-combatente da Guerra Civil Espanhola, Francesc Boix (Mario Casas, de “O Bar“), preso no campo de concentração de Mauthausen durante a Segunda Guerra. Tentando sobreviver, ele se torna o fotógrafo do diretor do campo, o oficial Paul Ricken (Richard van Weyden, de “Agente de Separação“). Após descobrir a iminente derrota da Alemanha no conflito, Boix tenta salvar os registros fotográficos dos horrores acontecidos no local. Assim como em outras produções ambientadas naquele período histórico, o filme não se furta de mostrar as atrocidades físicas e psicológicas cometidas pelos soldados alemães: a abertura exibe o trágico desfile de prisioneiros feridos em direção a Mauthausen, e o restante da narrativa apresenta as torturas e assassinatos praticados, exemplificados pela angustiante sequência em que os presos precisam olhar um companheiro ser enforcado.

Entretanto, o roteiro vai além e enfoca uma perspectiva nova pouco comum no cinema: ex-soldados espanhóis e comunistas que haviam enfrentado o fascismo em seu país natal e foram entregues ao governo alemão da época. O foco da narrativa ser esses indivíduos também perseguidos pelo nazismo poderia fornecer discussões e conflitos dramáticos muito ricos, que levariam o público a considerar um olhar específico sobre aquela experiência traumática. Apesar do seu potencial, o arco apenas trabalha os mesmos elementos já encontrados em “Os Falsários” a partir de seu protagonista, que demonstra empatia pelos demais companheiros, utiliza a fotografia como forma de salvação própria em muitos momentos (graças à dinâmica que estabelece com Ricken) e, gradativamente, assume uma postura mais ativa de enfrentamento do sistema e luta pela proteção também dos outros detidos. A evolução dramática é composta com eficiência por Mario Casas, apesar de o roteiro não explorar outras sutilezas específicas de sua condição de prisioneiro comunista espanhol.

A particularidade do filme é representada pelas diferentes percepções da imagem dentro de seu universo. A narração em off com que Francesc Boix abre a narrativa aponta para a importância do aspecto visual no campo de concentração: ela ressalta a preocupação dos nazistas em criar um “espetáculo” quase teatral na organização dos presos e na violência praticada contra eles – aspecto esse observado pela atuação de Richard van Weyden, que torna Paul Ricken um sádico voyeur disposto a fazer registros estéticos cruéis da situação dos prisioneiros, e pelo próprio esforço de todos os nazistas em garantir que os cadáveres de suas vítimas não denunciem suas atrocidades. Em contraposição a essa visão desumana, o protagonista encara a fotografia como um ensinamento de seu pai e, principalmente, um instrumento de resistência – não só pela dedicação em proteger os negativos das fotos que denunciariam os crimes dos nazistas a todo mundo, mas também pelos novos registros dos sobreviventes feitos por ele ao final da guerra.

Dentro das referências à fotografia e à imagem como um todo, ainda há outro elemento importante em “O Fotógrafo de Mauthausen”, trabalhado através da contextualização histórica. A decisão de ambientar os acontecimentos nos rumos finais da guerra, praticamente após a derrota alemã para a URSS na Batalha de Stalingrado, confere mais um conflito dramático aos personagens, relacionado à situação e ao destino dos campos de concentração. Além da iminente derrota da Alemanha, da radical transformação nas interações entre nazistas e presos e da proximidade da chegada dos exércitos dos Aliados, esse recorte específico do conflito destaca o valor dos registros históricos para o conhecimento e o esclarecimento de fatos e períodos marcantes da História. Assistir à obsessão com que os nazistas tentam destruir os registros de suas barbáries indica o quão decisivas são as fontes históricas para a devida interpretação do passado. É uma pena, portanto, que as questões suscitadas pelo uso da fotografia não sejam tão exploradas como poderiam, e que o arco tradicional de resistência vs sobrevivência tenha mais espaço.

Em termos técnicos, a fotografia acerta em apostar nas cores frias e dessaturadas do cinza e do azul para ilustrar a melancolia daquele cenário, apenas contrastada com o branco da neve ao redor. No caso da direção de Mar Targarona (“O Corpo“), os planos que denunciam a crueldade no campo de concentração são extremamente expressivos e impactantes, como se percebe em todas as ocasiões em que Ricken fotografa os prisioneiros em estado de inanição ou cobertos por ferimentos e mutilações. A maior ressalva ao seu trabalho diz respeito ao ritmo do segundo ato, que oscila em sequências passadas fora de Mauthausen.

Mesmo trazendo fortes, impactantes e emocionantes imagens dos campos de concentração, “O Fotógrafo de Mauthausen” desperdiça a oportunidade de se concentrar nas particularidades  que elevariam seu nível a algo ainda maior. Ele é um bom filme, contudo não escapa do perigo também inerente à própria fotografia: como citado em determinada cena, a realidade depende do ponto de vista, o que no caso de sua narrativa significou trabalhar pouco com a perspectiva mais inventiva e interessante que trazia.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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