Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Objetos Cortantes (HBO, 1ª Temporada): íntima e afiada [SÉRIE]

Com fortes atuações do trio principal, adaptação do livro de Gillian Flynn marca nova boa parceria entre HBO e o diretor Jean-Marc Vallée.

Em 2014, a autora Gillian Flynn teve sua carreira alavancada com a adaptação de “Garota Exemplar” para os cinemas, obra dirigida por David Fincher. O sucesso entre a crítica e o público fez com que mais livros de Flynn – outros thrillers tendo mulheres como protagonistas – fossem adquiridos para levar às telonas e telinhas, caso de “Lugares Escuros” e, agora, “Objetos Cortantes“. Produzido pela HBO e lançado em 2018, o último ganhou um tratamento de minissérie – com oito episódios -, oferecendo a chance de explorar com mais detalhes a narrativa da autora.

Na trama, quando o segundo assassinato de uma garota em um período de poucos meses acontece na pacata cidade de Wind Gap, no interior do Missouri, a jornalista Camille Preaker (Amy Adams) recebe a missão de seu editor de cobrir a história e montar um quadro do caso, aproveitando-se do fato de que ela é uma nativa do lugar. Para outros profissionais, o caso seria apenas mais uma matéria a ser feita. Mas para Camille, voltar a sua cidade natal mostra-se um grande desafio, que irá reabrir feridas do passado e trará à tona o conflituoso relacionamento com a mãe, Adora (Patricia Clarkson), além de permitir que ela conheça melhor a sua meia irmã, Amma (Eliza Scanlen).

A direção da minissérie fica por conta de Jean-Marc Vallée, que reedita sua parceria com a HBO após o sucesso de outra produção recente, “Big Little Lies“. Um dos méritos de seu trabalho é a ambientação e a imersão que ele cria para a pequena cidade, com várias tomadas dedicadas a mostrar as características do lugar, seus estabelecimentos e habitantes, fazendo com que a audiência tenha a sensação de fazer parte deste meio. Essa ambientação também é trabalhada em outros sentidos, como para mostrar o quão sufocante Wind Gap é para Camille, e como o lugar mexe com seu psicológico e a faz mal.

Esse aspecto de “Objetos Cortantes” é melhor evidenciado quando ela está em sua antiga casa, na presença da mãe, da meia-irmã e do padastro Alan (Henry Czerny). Uma das estratégias utilizadas por Vallée para realçar essa sensação está na iluminação do ambiente, com várias cenas na residência tendo uma iluminação mais fraca, proveniente de abajures, em contraste com os ambientes mais claros existentes na cidade. Desta maneira, o diretor consegue garantir uma atmosfera de tensão, presente em toda a obra. Uma sensação de conflito iminente, de que algo grande irá acontecer, experimentada de maneiras diversas: na sala de jantar dos Preaker; em uma conversa, no meio do bosque, entre Camille e o detetive de Kansas City que investiga o caso, Richard Willis (Chris Messina); ou durante um churrasco em comemoração a um feriado local, com a presença dos habitantes. Uma tensão gerada não apenas pelo que é dito, mas também pelo silêncio presente em vários desses momentos. A trilha sonora até conta com um bom tema para a série, mas a música perde a chance de realçar esta tensão e tornar a minissérie ainda mais imersiva.

O roteiro é outro elemento de qualidade destacável da obra. Alinhada a ambientação visual, a trama também procura trazer esse caráter íntimo, de proximidade, entre os personagens e o público. Focada em Camille na maior parte do tempo, o texto acerta em não perder tempo com subtramas desnecessárias, dividindo-se em poucos núcleos além do dela. Com esse foco, os episódios, com cerca de 50 minutos cada, têm um ritmo cadenciado e desenvolvem o mistério com paciência, mas sem se tornarem demasiadamente arrastados. Se, por um lado, esse foco permite um desenvolvimento melhor elaborado do trio principal, essa opção deixa de lado alguns dos coadjuvantes, como Richard e outros habitantes de Wind Gap, tornando-os menos atrativos na hora de acompanhar a história.

A montagem de “Objetos Cortantes” chama a atenção pela habilidade ao juntar o presente com passagens da infância e do passado de Camille. Essas inserções podem acabar confundindo o público, mas em sua maioria apresentam-se com a função de aprofundar a protagonista, desenvolvendo mais o passado da personagem e interligando o que já aconteceu com o mistério atual. Os flashbacks contam com poucos diálogos, mas conseguem contar muito sobre o que aconteceu e quem Camille é hoje: traumatizada pela perda de sua irmã mais nova, quando ela era pequena, e colecionando cicatrizes dos episódios em que ela se cortou. Uma estratégia que é eficiente, sem ser totalmente convencional.

Reconhecida com indicações a prêmios como o Screen Actors Guild Awards e o Globo de Ouro, as atuações do trio principal são o grande trunfo da minissérie. A química entre Adams, Clarkson e Scanlen funciona muito bem, conseguindo explorar as diferentes nuances do relacionamento entre elas e, com isso, mostrando os diferentes lados das personagens, ao mesmo tempo que as tornam tão reais quanto Wind Gap. Tendo conquistado o Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz Coadjuvante em Minissérie, Clarkson mostra desenvoltura em um papel no qual ela alterna entre vários sentimentos na presença das filhas: afável, cínica, carinhosa, dura, protetora e ressentida. Um leque de emoções, todos mostrados com credibilidade.

A Amma de Eliza Scanlen também demonstra um pouco desse lado cínico da mãe, sobretudo na maneira como trata a meia-irmã, alternando entre algo afetuoso e ríspido. Muito disso é proveniente do quão mimada pela mãe ela foi, mas é a partir dessa característica que a atriz consegue contrapor um lado inocente, mais dócil, na frente dos pais, com uma faceta mais decidida, descolada e meio cruel com as amigas e Camille. A atuação de Adams, por fim, é mais um bom trabalho que a atriz acumula em sua carreira, sendo um lembrete para o quão competente ela é. Misturando fragilidade com determinação, ela entrega uma personagem verossímil, com profundidade e complexidade, exercendo sem dificuldades o papel de protagonista da obra.

“Objetos Cortantes” pode não ter tido o impacto e a repercussão que “Big Little Lies” teve na HBO em 2017, mas configura-se como mais um bom trabalho de Jean-Marc Vallée no canal, em uma adaptação que faz jus ao livro de Gillian Flynn. Intrigante, envolvente e com atuações convincentes, a produção é um ponto alto da TV em 2018, indispensável para aqueles que apreciam um bom mistério.

Luís Gustavo
@louisgustavo_

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