Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 07 de fevereiro de 2019

She-Ra e as Princesas do Poder (Netflix, 1ª Temporada): uma heroína mais humana [SÉRIE]

Com a missão de trazer a personagem para o século XXI, a série traz uma She-Ra mais jovem e com mais conflitos, numa boa jornada de amadurecimento e aceitação.

Na década de 1980, o desenho “He-Man e os Mestres do Universo” foi lançado para promover a linha de brinquedos recém-lançada. Com o grande sucesso, logo a série gerou o spin-off da irmã do protagonista com “She-Ra: A Princesa do Poder”, obviamente acompanhada da sua própria linha de produtos infantis. Décadas depois, a DreamWorks e a Netflix se juntaram para dar uma nova abordagem à heroína com a animação “She-Ra e as Princesas do Poder”.

A autora de quadrinhos Noelle Stevenson (dos elogiados “Nimona” e “Lumberjanes”) recebeu a responsabilidade de trazer a personagem para o século XXI, mas quando as primeiras imagens que revelavam o visual da nova animação da She-Ra apareceram na internet, muito se polemizou a respeito, com muitos amando e outros odiando o resultado. Apesar de tudo, é inegável a evolução e amadurecimento que Stevenson trouxe para o universo de Etéria.

O que foi mantido

O primeiro grande acerto da autora foi o de respeitar a mitologia original, pois toda a base que compõe a personagem no desenho anterior se encontra aqui. Adora começa como membro da Horda, cujo chefe é Hordak e logo é apresentada a algo (sem spoilers) que a leva a questionar o mundo que conhecia e perceber qual é o verdadeiro mal. Ela é atraída por uma espada mágica que com o famoso grito “pela honra de Grayskull” a transforma na princesa She-Ra.

Toda a identidade visual da série dos anos 80 também se mantém. O contraste entre as construções bélicas e metálicas da Horda e as paisagens naturais cheias de cores de diferentes reinos funciona bem, mas o que realmente se destaca aqui são os uniformes. Do coração no peito do Arqueiro, passando pela jaqueta vermelha da Horda, aos símbolos na roupa da própria She-Ra, tudo que importa de verdade está presente. A essência da personagem se mantém.

O que mudou

Bom, nada de “irmã do He-Man”. A série em momento algum deixa o parentesco claro, porém com a própria Adora gritando “Grayskull” em sua transformação, sempre existirá a possibilidade de Adam existir em algum lugar. Há, inclusive, ruínas que revelam uma tecnologia antiga que pode fornecer interessantes mistérios a serem explorados no futuro. Todo esse universo pode ser facilmente expandido.

Outra mudança bem-vinda foi a de dar um corpo diferente para cada personagem. Na animação do século passado, havia um modelo masculino (muito musculosos) e outro feminino (todas esguias e atléticas), e eles serviam para todos os personagens, mudando apenas roupas e cabelos. Aqui há uma preocupação em retratar pessoas individuais, cada uma com seu físico único. A própria Adora tem o corpo bem diferente da She-Ra, que parece ter mais de dois metros de altura e, literalmente, irradia luz (o que faz maravilhas narrativas para ilustrar como ela é vista como a promessa de dias melhores, como a grande heroína de lendas). Cintilante é baixinha e rechonchuda; Arqueiro não parece um triângulo invertido de músculos, mas um jovem de estatura padrão; e Scorpia é uma mulher alta com cabelos curto. Essas diferenças seguem para as outras Princesas e membros da Horda e torna tudo mais relacionável, já que o nosso mundo é composto por pessoas com físicos variados.

Já uma mudança que ilustra que a série é para pessoas mais jovens é o fato de quase todos os personagens principais serem adolescentes, ao contrário dos adultos formados da animação original. Com isso, muitos dos conflitos são infantis, de pessoas que precisam aprender a lidar com divergências e deveres e que precisam amadurecer. E esse elemento funciona muito bem na personagem-título. Adora pode se transformar fisicamente na grande heroína, mas ainda se sente insegura no papel que precisa exercer e na sua capacidade de fazê-lo. Algo mais palpável do que o automático poço de confiança que era a She-Ra de 1985, pois nos relacionamos melhor com uma jornada do que com uma figura messiânica milagrosamente preparada.

A maior mudança é também o maior trunfo da nova série: a relação entre Adora e Felina. A começar pelo visual da antagonista, que antigamente tinha esse nome por se transformar numa pantera. Aqui ela é uma humana com características físicas felinas (calda, garras, olhos e orelhas). As duas cresceram juntas na Horda e sempre foram muito próximas, ao mesmo tempo que percebia-se um espírito competitivo por parte de Felina. Ao desertar, Adora magoa a amiga, que se sente rejeitada e abandonada, mas que também aproveita a ausência da rival para tentar subir na hierarquia da organização. Essa gama de sentimentos gera uma relação de amor e ódio entre as duas que permeia durante toda a temporada, entregando os melhores momentos e diálogos da série.

A respeito de representatividade e inclusão, essa relação faz a série brilhar. Há camadas entre as duas que podem ser interpretadas como amor romântico, mas é tão bem feito que parece que nem as próprias perceberam isso ainda. É sutil e real, e ao fugir da armadilha de querer escancarar a (importante e necessária) causa, permite que ela seja costurada de maneira orgânica na série e deixa fluir o desenvolvimento de ambas as personagens naturalmente.

O que não funciona

Infelizmente, nem tudo é bem escrito. O título da série agora é “She-Ra e As Princesas do Poder” – “princesas” no plural, o que é refletido na tentativa da série de torná-las membros importantes da trama, mas que acaba sendo muito raso com uma ou outra exceção. Arqueiro é um personagem central que não tem um arco narrativo. Cintilante até tem seus conflitos, mas são apressados e ficam sem o peso necessário, porque o foco logo precisa mudar para Adora. Ventania simplesmente some por vários episódios para voltar no final de maneira excessivamente conveniente. Mas o pior é a inserção da personagem Madame Rizzo, que aparece em um único episódio como fan service gratuito e inútil. Era melhor ter sido guardada para outras temporadas.

Veredito

Noelle Stevenson fez um ótimo trabalho em trazer She-Ra para uma linguagem mais contemporânea. Com muito respeito ao trabalho original, “She-Ra e as Princesas do Poder” amadurece a heroína e seu mundo não só como personagens, mas como símbolos de igualdade e respeito que têm muito a dizer para seus espectadores. Adora ainda está tentando se entender, mas quantas pessoas ainda não estão? Durante os 13 episódios, pode-se acompanhar seus desejos e tentativas de ser melhor, e essa temporada consegue com êxito criar curiosidade e expectativa para acompanharmos o resto de sua jornada. O futuro promete.

Bruno Passos
@passosnerds

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