Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de fevereiro de 2019

Clímax (2018): fervo e delírio numa sangria desatada

Gaspar Noé ameniza as polêmicas em seu novo longa e faz uma incrível homenagem à "Possessão" e "Suspiria" ao acompanhar a descida ao inferno de um grupo de dançarinos que toma um drink batizado com LSD.

Nascer é uma oportunidade única, viver é uma impossibilidade coletiva e morrer é uma experiência maravilhosa. Estes são os três pilares de pensamento apresentados em letras garrafais durante “Clímax”, pesadelo criado por Gaspar Noé (“Love”). Dados os acontecimentos do longa, não é difícil concordar com as afirmações, especialmente a segunda: mais do que uma mera história a ser acompanhada, Noé fez um filme impossível de não se envolver emocionalmente, seja nos momentos de êxtase ou de desespero.

Assim como outros longas que fez, “Clímax” começa pelo fim para, depois, seguir uma ordem mais cronológica. Uma mulher rasteja pela neve, ensanguentada e gritando por ajuda. Um corte abrupto leva para uma sala com uma TV rodeada de livros e fitas VHS: “Suspiria”, de Dario Argento; “Possessão”, de  Andrzej Zulawski; “Salò, ou os 120 Dias de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini; e “Querelle”, de Rainer Werner Fassbinder, são alguns dos títulos. Na televisão, entrevistas feitas com dançarinos são exibidas, mostrando pessoas de backgrounds e personalidades diferentes sendo entrevistadas para participar de uma companhia de dança. Vale prestar muita atenção aqui: a coletânea naquela sala é a coleção pessoal de longas preferidos de Noé, e que tanto os filmes quanto as entrevistas com os dançarinos adiantam o que está por vir na história.

Eis que, enfim, começa. Durante o inverno francês de 1996, uma companhia de dança se instala em um alojamento para ensaiar. Dançarinos de vogue, krump e waack se juntam para criar uma coreografia que testa os limites do corpo, filmada de forma que o espectador se sinta convidado a entrar na roda e mostrar suas habilidades. Após o ensaio, faz-se a comemoração. Com sangria sendo servida a rodo, todos começam a interagir e também a fofocar entre si. Passado um tempo, vem a realização coletiva de que algo não está certo: alguém batizou a sangria. A partir daí inicia-se a caçada para saber quem fez a brincadeira de mau gosto e, pior, como lidar com os efeitos brutais da mistura entre música alta, álcool e LSD em um ambiente fechado.

Para o bem ou para o mal, não é necessário se drogar para entrar na bad trip coletiva da trama. Os acontecimentos, muitas vezes filmados em plano-sequência e chafurdados em luzes fortes enquanto um techno pulsante toca ao fundo, podem ser gatilhos para crises de ansiedade mesmo estando sóbrio – sendo este um dos principais feitos da visão de Noé em “Clímax”. Nem o próprio diretor gostaria de estar nesta sangria desatada (literalmente), mas a sensação de não poder escapar deste pesadelo alucinógeno é persistente. Apenas abrir a porta do alojamento não vai fazer a angústia ir embora, como bem mostra o longa.

O corpo, aqui, também é um indutor de delírio: com um elenco formado quase que inteiramente por dançarinos não atores e cenas improvisadas (o roteiro tinha somente cinco páginas, segundo o diretor), a desintegração do estado mental dos personagens é mostrada através de danças cada vez mais complicadas e envolvendo contorcionismo, fazendo até uma ode à famosa cena no metrô de “Possessão”, cortesia do bom trabalho de Selva, personagem de Sofia Boutella (“Atômica”) – que, ironicamente, é uma dos únicos dois atores profissionais no filme (o outro é Romain Guillermic, de “Elektro Mathematrix”, que interpreta David).

Como em “Suspiria”, de Argento, e “Viagem Alucinante” do próprio Noé, as cores tem grande função narrativa, especificamente uma: a cor vermelha, que permeia a festa e, a exemplo de “Irreversível”, está sempre iluminando o corredor, indicando que o perigo está à espreita. A trilha sonora, que passa por Patrick Hernandez, Gary Numan, Aphex Twin e Daft Punk, também tem o papel fundamental de embalar a noitada e reflete bem as influências dos anos 1970, 80 e 90. O longa conta com o melhor e pior do techno e do eletrodance: melhor pela qualidade das músicas, e pior porque a trilha acentua as sensações delirantes a ponto de quase implorar à tela para que abaixem o som.

Apesar de ser menos polêmico do que os últimos trabalhos de Gapar Noé, “Clímax” não carece de intensidade ou até mesmo de temas delicados como morte, aborto, incesto, linchamento público e comportamentos sexistas. Viver neste coletivo apresentado na tela é, realmente, impossível, e parece que só a morte pode amenizar o fervo e o delírio. Mas, assim como diz o letreiro no meio do filme, nascer é uma oportunidade única. Aqui, os personagens “matam” seus pudores, tentando se encontrar no meio de pensamentos confusos e mentalidade de colmeia na busca pelo culpado de batizar a sangria. Aí, nascem seus instintos mais primitivos, seus desejos mais secretos e, para alguns, vem à luz a culpa. De fato, Noé provou que a vida é complicada, mas intensa até mesmo com as premissas mais simples.

Jacqueline Elise
@jacquelinelise

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