Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 06 de fevereiro de 2019

Cora Coralina: Todas as Vidas (2017): da casa velha da ponte para o Brasil

Nascida na Cidade de Goiás, a pequena Ana retratou através das suas poesias a vida simples e bela do povo interiorano, integrando o universo da literatura brasileira com seu vigor e simplicidade.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida pelo pseudônimo Cora Coralina, foi uma mulher múltipla, daquelas com muitas histórias para contar e que deixou sua marca por onde passou. Nascida ainda no século XIX, ela carregava consigo uma leveza e modernidade no pensar e no escrever que rivalizam com outros grandes poetas do Brasil. A responsabilidade de levar a vida dessa poetisa ao cinema em “Cora Coralina: Todas as Vidas” ficou com Renato Barbieri (“Araraquara: Memórias De Uma Cidade”), que cumpriu a tarefa com mérito.

Cora teve o seu trabalho reconhecido nacionalmente apenas quando alcançou seus 90 anos, mas começou a escrever muito tempo antes. E apesar de ter passado por duas Guerras Mundiais, a corrida espacial, e tantos outros grandes acontecimentos (dos quais ela tinha conhecimento, pois era bem informada), sua temática era outra. No poema que dá título ao filme, ela escreve: “Vive dentro de mim/ a mulher do povo/ Bem proletária/ Bem linguaruda/ desabusada/ sem preconceitos/ de casca-grossa/ de chinelinha/ e filharada”. Essa linguagem simples e direta, que fala sobre o interiorano, a cidade e a natureza, foi sua marca registrada.

Cinco mulheres encarnam a escritora, caminhando pelos cenários que fizeram parte de sua vida e interagindo com o ambiente. Elas fornecem seus corpos para representar a goiana com roupas características de cada época, enquanto suas vozes são usadas para declamar parte dos 25 poemas presentes na obra. Essa mistura entre o real (entrevistas e imagens de arquivos) e ficção (encenações de passagens importantes da vida da autora) é uma característica do diretor que contribui para dar corpo a momentos que não haviam sido fotografados ou filmados.

Na infância, há Camila De Queiroga Salles como a pequena Ana, ou Aninha. Como a escritora já jovem adulta, assume Camila Márdila (“Que Horas Ela Volta?”); e representando a terceira idade da homenageada, vemos Walderez de Barros (“Quincas Berro d’Água”). Todas emprestam um brilho diferente e complementar ao filme, que chega a lembrar mesmo um sarau pela muitas declamações.

As filmagens buscaram os locais reais por onde a poetisa esteve, como a “casa velha da ponte”, onde hoje existe um museu dedicado a sua obra. Os artifícios usados de filmagens com drones, gruas, etc. poderiam soar como um exagero estilístico ou maneirismo sem propósito, mas é orgânico e tem seu uso justificado no filme, pois ajuda a passar a sensação bucólica que a vida no interior gera, contemplativa e com uma passagem de tempo mais cadenciada.

Quando o escritor e pesquisador Clóvis Carvalho descreve Cora Coralina como “uma mulher à frente do seu tempo”, ele o faz pois ela foi atuante também em outras áreas, ajudando no desenvolvimento e preservação ambiental das cidades pelas quais passou, como em Jaboticabal, no interior de São Paulo. Ela foi uma “figura forte que soube conduzir as rédeas de seu próprio destino”, ainda nas palavras de Clóvis, que divide o tempo de tela com outros 12 entrevistados, entre pesquisadores, familiares e amigos.

Por fim, a trilha fecha o pacote com chave de ouro. Luiz Olivieri (“Acalanto”) e Eduardo Canavezes (“O Mistério da Carne”) produziram belíssimas composições, com destaque para a canção-tema do filme. As músicas foram uma ótima forma de embalar os poemas que fazem parte da obra, e podem servir, inclusive, como pano de fundo para a leitura dos livros Cora Coralina, parte importante da literatura brasileira.

Hiago Leal
@rapadura

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