Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Quando os Anjos Dormem (Netflix, 2018): o Diabo dá as caras

Produção espanhola adquirida pela Netflix coloca o público na pele do protagonista ao perguntar: “O que você faria?”

Imagine só: o famoso “homem de bem”, simples e calmo o bastante para não discutir com algum distraído que bateu em seu carro. Um homem de boa-fé que a muito custo mantém uma família de classe média-baixa. Um trabalhador comum que mesmo sufocado diariamente pelas pressões da empresa e tendo que lidar com a cobrança dos colegas, permanece resiliente e dedicado a ponto de colocar os interesses da companhia acima dos de sua família. Você com certeza conhece ou conheceu alguém assim, seja por meio de outros filmes ou quem sabe na vida real. Pois essa é a premissa de Quando os Anjos Dormem, um thriller sem muita sofisticação, porém eficaz na maneira como conduz o espectador por sua narrativa e o provoca com suas perguntas.

Germán (Julián Villagrán, “A Promessa”) é o funcionário de uma companhia de seguros, constantemente pronto para atender as demandas da empresa, mas sempre muito ocupado para estar com sua mulher e sua filha. Tentando chegar a tempo de participar do aniversário da filha Estela (Sira Alonso), Germán cochila durante o percurso e sem intenção se vê como responsável por causar um acidente. Sua única esperança é a amiga da vítima, uma garota de 17 anos, também cercada por problemas familiares. O que você faria? O que você faria agora? E agora? O roteiro do espanhol Gonzalo Bendala martela essas questões na cabeça do público regularmente ao passo que a narrativa vai se desenvolvendo e tomando novos rumos, impulsionada pelas escolhas de seus personagens.

No início, somos apresentados às características que fazem do protagonista – aparentemente, uma figura confiável, de boa índole e apesar de todos os problemas, apaixonado por sua família. Tais escolhas do argumento são expostas pela direção do próprio Bendala de um jeito convencional, exceto por uma cena passível de várias interpretações, sendo uma delas usar os devaneios de Germán para sugerir algo que ele há tempos representa para sua família: um homem morto, de várias formas. A câmera de Bendala volta a aparecer com peso somente no terceiro ato do filme, com exibição de planos que brincam com a paleta de cores quentes (o vermelho agindo como o lado mal) e cores frias (o azul revelando a frieza de uma pessoa desolada e abatida por suas questionáveis escolhas).

Quando os Anjos Dormemacaba repetindo algumas ações ao longo do caminho (a perseguição da incansável adolescente Silvia por parte de Germán acontece mais de uma vez), somado a outras coincidências nada atraentes para um roteiro que beira o realismo, incham um filme de aproximadamente 1h30, que logo demonstra ser um problema. No entanto, pela discussão proposta, por mais que possa parecer básica, vale passar por obstáculos. Assistir a desconstrução do “homem de boa-fé” principalmente durante momentos em que ele deveria ter mais razoabilidade e menos credulidade, colabora para um delicioso e doloroso testemunho do adormecer dos anjos nas atitudes daquele sujeito e o despertar gradativo de iniciativas aprovadas pelo diabo.

Os atores coadjuvantes da história dão conta do recado. Ester Esposito (a Carla da série “Elite”), intérprete de Sílvia, é a encarregada de confrontar os atos de Germán. Dominada por um tangível estado de choque, que mantém-se no decorrer da produção, ela exala medo e constante descrença com relação aos interesses do protagonista, para ela, apenas o assassino de sua melhor amiga. O filme ainda encontra um pequeno espaço para um arco dramático mais complexo, embora previsível, envolvendo Sandra (Marián Alvarez, “O Caderno de Sara”) e Germán. Ao final, Quando os Anjos Dormem, presenteia o seu espectador com uma conclusão surpreendente e muito bem elaborada. Uma jornada de desconstrução cheia de aflitos e igualmente boa para apreciar.

Renato Caliman
@renato_caliman

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