Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 09 de janeiro de 2019

Assunto de Família (2018): o primor do cinema de Hirokazu Kore-eda

Premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, "Assunto de Família" traduz o refino da arte do cineasta japonês ao contar a história de uma família desajustada.

A família Shibata não é tão ordinária quanto parece. Para começo de história, a figura paterna de Osamu (Lily Franky, “Pais e Filhos”) passa tempo com o pequeno Shota (Kairi Jō, da série “Erased”) praticando furtos ensaiados e levando os frutos das peripécias de volta para a casa paupérrima e apertadíssima da afável Hatsue (Kirin Kiki, “Andando”), uma senhora que ainda colabora com a pensão que recebe do falecido marido e cuida de sua jovem neta Aki (Mayu Matsuoka, “A Voz do Silêncio”). Numa noite fria da capital japonesa, Osamu e sua companheira Nobuyo (Sakura Ando, “Love Exposure”) acolhem uma menina vista repetidamente abandonada ao relento e, ao descobrir que ela também sofre violência doméstica, decidem protegê-la dentro do clã. O dia a dia dos seis personagens e o que eles fazem com suas vidas é “Assunto de Família”.

O filme se trata de uma das melhores obras do prolífero diretor e roteirista japonês Hirokazu Kore-eda (“O Terceiro Assassinato“). A qualidade de seu trabalho carrega marcantes elementos autorais estabelecidos ao longo de sua celebrada carreira e aqui estampados na temática do filme e nos arquétipos de seus personagens. O drama sob o ponto de vista dos jovens Aki, Shota e da menina Yuri, por exemplo, traz características exploradas no trágico “Ninguém Pode Saber” de 2004, como o abandono infantil, a maturidade forçada de um engenhoso pré-adolescente para cuidar dos mais novos, e a integridade testada por furtos de lojas e pela exploração sexual da maior como opção de sustento. Já com idade para trabalhar, Aki usa o pseudônimo Sayaka num clube de entretenimento adulto. E quando Shota passa a ter que tomar conta de Yuri como sua irmã postiça, ele começa a questionar o significado moral do “hobby” ensinado por Osamu.

Nem toda maneira dos Shibatas para conseguir dinheiro é questionável. Nobuyo trabalha em meio a outras mulheres como passadeira num serviço de lavagem de roupas, e Osamu é contratado da construção civil, pelo menos ao início da história, pois sua família logo comemora a indenização que ele terá que receber por quebrar o pé na função. Em recuperação, o personagem de Lily Franky busca se aproximar de Shota apesar de suas dificuldades de se relacionar tanto com a parceira, quanto com o menino que não tem o costume de chamá-lo de “pai”. Problemas relativos à paternidade são temas recorrentes na filmografia de Hirokazu e, por coincidência, em todas as suas colaborações com Franky até o momento, como em “Pais e Filhos”. Em outra obra impecável, “Depois da Tempestade”, o protagonista não consegue ser um pai exemplar para o filho assim como a educação de Shota por Osamu gira em torno de atitudes condenáveis. Esse longa também compartilha com “Assunto de Família” a idosa matriarca meio dissimulada de Kirin Kiki e as discussões sobre suas pensões. A ótima atriz foi uma grande colaboradora nos filmes de Kore-eda até infelizmente falecer de câncer aos 75 anos.

Ao retratar parentelas de classes média e baixa, Hirokazu prefere compor suas cenas no interior dos lares, aproveitando a profundidade e os divisores das casas japonesas para dispor as pessoas como quadros vivos e quase sempre enquanto se alimentam. Assistir aos filmes do cineasta com a barriga vazia definitivamente não é uma boa opção, mesmo quando a pobreza é presente, como neste caso. Não que a comida seja um aspecto glamoroso, mas ver os personagens se deliciando com o que podem traz camadas adicionais a eles e um gosto extra às obras. É uma das formas que Kore-eda utiliza para projetar sensações além do audiovisual. Ao chamar atenção ao paladar, ao cheiro e aos aspectos táteis do clima, da temperatura ou de objetos que as pessoas manipulam enquanto tecem suas vidas, o diretor aproxima as experiências da tela aos espectadores por maneiras que todos podem se relacionar. Tais características podem ser vistas acentuadamente em “Nossa Irmã Mais Nova”, filme com a premissa até similar da introdução de uma menina desconhecida na família.

Mesmo com os ingredientes usuais, o roteiro de Hirokazu monta um quebra-cabeça de intenções e intrigas misteriosas que se desenrolam de um jeito enredado e gratificante. Diferente de um puro estudo de personagens e sem ceder ao suspense, o desaparecimento reportado pelos pais de Yuri às autoridades guia a história para um desfecho que recompensa em múltiplos níveis, finalizando o arco de cada um com delicadeza e satisfação. Independente das repreensíveis ações dos Shibatas, as motivações e as complexidades dos integrantes são dispostas ao longo da história repleta de uma humanidade inquietante. A cada obra, o cinema de Hirokazu Kore-eda evolui extraordinariamente e “Assunto de Família” simboliza um novo ápice para a sua filmografia.

William Sousa
@williamsousa

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