Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O Confeiteiro (2018): entre biscoitos, tortas e segundas intenções

O filme israelense sobre as consequências da perda de um amor cruza as vidas de um confeiteiro e uma viúva num delicado e atrevido estudo de personagens.

Thomas (Tim Kalkhof) é um jovem, silencioso e ultra reservado confeiteiro alemão que trabalha em Berlim e começa um relacionamento esporádico com o israelense Oren (Roy Miller), homem casado que mora em Jerusalém com esposa e filho. Oren visita Berlim a trabalho e mantém o caso com Thomas entre idas e vindas até desaparecer. Não demora muito para o alemão descobrir o motivo do sumiço. Oren morreu num acidente e isso faz com que o protagonista deixe a confeitaria para descobrir mais sobre a vida do ex-parceiro em Israel. “O Confeiteiro” retrata os passos de Thomas para se aproximar da família de Oren sem que ninguém descubra sobre seu relacionamento com o falecido.

Existe um salto de um ano entre o dia em que Thomas conhece Oren e a última despedida. Não se vê detalhes sobre como esse relacionamento evoluiu tanto a ponto de deixar o alemão perplexo e obsessivo quando descobre que Oren não volta mais. O confeiteiro é calado e, no pouco que fala, pergunta mais que responde. Ele não gosta de falar sobre si, pelo menos não quando a câmera do estreante diretor Ofir Raul Graizer está perto, e sentia prazer ao ouvir Oren descrever detalhes sobre como fazia amor com a esposa Anat (Sarah Adler, “Foxtrot”) a pedidos do próprio amante.

Em Jerusalém e ainda enfrentando resquícios de luto, Anat resolve reabrir uma cafeteria mesmo com as dificuldades de conciliar o trabalho com a demanda por atenção do filho e a pressão do ex-cunhado e religioso Moti (Zohar Shtrauss, “Pecado da Carne”) para manter o método kosher presente e certificado no estabelecimento. Por empatia e pelo tom cinza e azul da rotina atarefada de Anat, entende-se que a mulher beira a depressão. Logo, a chegada do misterioso alemão que busca emprego no café se torna conveniente para Anat contratá-lo para ajudá-la lidar melhor com as responsabilidades.

A frieza na expressão de Thomas, suas respostas curtas e uma trilha desconfortante que o acompanha enquanto investiga os lugares frequentados por Oren dificulta a identificação com o protagonista, fator que o filme parece contar que aconteça, pois o contrário significaria perturbadoras intenções do confeiteiro. De certa maneira, a facilidade que o alemão apresenta para se colocar no vazio deixado pelo ex-amante é maior que a que o público tem para se aproximar de Thomas. A câmera segue seus passos e olhares, mas o personagem responde com raras reações contidas. Quando o roteiro dá oportunidades para o alemão contar um pouco sobre seu passado, suas respostas são atravessadas. Isso tudo torna a personagem de Anat mais acessível e relacionável que o confeiteiro, porém, quando se toma o lugar dela e de sua luta para reerguer a vida, os segredos do forasteiro podem ser vistos como uma ameaça à estrutura emocional da família de Oren. Com isso, apesar do filme instigar o espectador a seguir a perspectiva de Thomas, é possível vê-lo como antagonista a ponto de torcer para que ele volte logo para a Alemanha antes que seja descoberto.

O confeiteiro só não veste completamente a máscara de usurpador porque sua virtuosa habilidade na fabricação de biscoitos e tortas conquista Anat e o torna responsável pela revitalização da cafeteria. Por outro lado, o fato de não ser judeu coloca em risco a certificação kosher do café e justifica a preocupação de Moti em relação à possível influência negativa de Thomas nas tradições da família. À medida que a viúva se conforma com a nova vida e até esboça sorrisos novamente, ela toma coragem para mexer aos poucos nos objetos pessoais de Oren, que incluem traços sobre como eram os dias dele enquanto trabalhava em Berlim.

Não há muitos planos ou movimentos de câmera na obra de Ofir Raul Graizer. O diretor e roteirista marca as cenas, mas deixa todo o trabalho de observação e estudo dos personagens para os olhos do espectador, que percorrem a tela em busca de detalhes e reações para montar o quebra-cabeça sobre os rumos do filme para Thomas e Anat, torcendo para que nenhum deles tenha o coração partido pelas consequências das atitudes do alemão. Enfim, “O Confeiteiro” é um audacioso filme que aposta na empatia do público para acompanhar as enigmáticas interpretações de Tim Kalkhof e Sarah Adler numa gentil jornada de luto e amor.

William Sousa
@williamsousa

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