Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Mary Shelley (2017): a arte contra barreiras sociais

O drama romântico de época é uma verdadeira ode ao fazer artístico e um contundente retrato histórico. Em uma época cercada pelo machismo, a trajetória de Mary Shelley para a criação de Frankenstein se torna a luta contra barreiras sociais.

A análise minuciosa de uma obra artística não contempla apenas sua linguagem, pois envolve também o exame de seu autor e do contexto de produção. Esses dois outros aspectos permitem um acesso próprio à visão do mundo em (re)construção do artista e ao seu diálogo com um momento histórico e artístico do qual faz parte. Tais elementos não faltam a “Mary Shelley“, produção disponível na Netflix, sobre o amadurecimento de Mary Wollstonecraft Godwin como mulher no século XIX e como a renomada escritora do clássico da literatura “Frankenstein”.

O filme acompanha o romance entre a jovem Mary, de 16 anos, e o poeta Percy Shelley na Inglaterra do século XIX. Enquanto vive o amor, desfruta do meio literário inglês do período e passa por diversas dificuldades na vida, ela escreve “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno“, clássico da literatura de terror. A narrativa construída pela diretora Haifaa Al-Mansour (“O Sonho de Wajda“) possui duas dimensões, conforme ela avança e se desenvolve: a ênfase no valor da arte para a existência humana, sendo uma atividade que dá poesia e beleza a tudo ao seu redor, além de poder servir de suporte para questionamentos de valores sociais ou políticos estabelecidos; e o registro histórico sobre uma época quando não se publicavam livros escritos por mulheres ou se esperava que elas escrevessem apenas determinado gênero, não aceitando, por exemplo, a escrita de uma história de terror.

A literatura é mostrada como algo pertencente ao universo da protagonista desde muito nova, principalmente no primeiro ato quando o foco está na dinâmica de sua casa habitada também por seu pai, madrasta e dois irmãos. A mãe, antes de morrer, era uma escritora de ideias radicais para o período, assim como seu pai ainda é trabalhando em uma livraria; Mary lê muitos livros de terror e tenta escrever sua própria história; e os lugares por ela frequentados abrigam poetas e outros artistas importantes do cenário cultural inglês. A cineasta ainda ressalta a força da literatura com algumas inserções da narração em off  de trechos de obras lidas por Mary e com a edição de som do rabiscar constante do lápis nas folhas de papel.

Quando a protagonista conhece Percy (Douglas Booth, “Com Amor, Van Gogh“), o amor entre eles é construído, primeiramente, pela admiração que sentem pelas artes; só, em seguida, desenvolvem uma paixão. É a partir do intenso romance que as primeiras convenções sociais são quebradas pelos personagens, afinal a fuga de suas casas e famílias (acompanhadas de Claire, irmã dela) gera um escândalo na sociedade – dois jovens vivendo juntos, mesmo não sendo casados. Nesse momento, o filme transita por diferentes locais para mostrar a tentativa de sobrevivência dos três personagens através da arte, porém não explora com afinco a recriação de época necessária a uma história como essa: nas cenas internas, o cenário é apresentado rapidamente; já nas locações externas, os planos fechados dificultam a percepção dos ambientes.

O convívio do casal, com o passar do tempo, sofre com dificuldades, desentendimentos e crises que tornam o relacionamento problemático. A vida boêmia de Percy afeta a situação econômica da família; sua crença de que Mary deveria, basicamente, ter uma fidelidade absoluta a suas convicções não aceita a possibilidade de mudanças; os costumes sociais de colocar a mulher como dependente do homem retira o direito à livre escolha e condução de sua vida; e a progressiva desilusão de planos e sonhos torna Mary melancólica e infeliz. Esse segmento da produção, entretanto, é prejudicado pela montagem, que não consegue encadear as sequências de modo a indicar a passagem do tempo – momentos impactantes surgem repentinamente, como uma tragédia familiar que se abate sobre Mary e Percy, e alterações cronológicas em suas vidas não são bem preparadas dramaticamente.

Ainda assim, os antecedentes para a criação de “Frankenstein” são trabalhados com grande eficiência pelo roteiro, interligando a personalidade de Mary e os acontecimentos de sua trajetória pessoal. A história de um cientista que tenta reanimar os mortos unindo partes do corpo de diferentes pessoas é uma alegoria para a solidão e o abandono, ambos vivenciados pela criadora do livro durante um período de convivência com Percy – dessa forma, suas dores pessoais e o interesse pela ciência se fundem para dar origem à obra. Em busca de sua própria voz artística, ela ainda precisa lidar com os preconceitos de uma sociedade que não a reconhece como autora – a primeira edição foi lançada com autor anônimo e introdução escrita por Percy, o que lhe fez, temporariamente, ser tratado como escritor da história. Tamanha complexidade de personagem é bem desenvolvida por Elle Fanning (“O Demônio de Neon“): ela passa da inocência juvenil descobrindo os prazeres da arte, para a desorientação de uma vida adulta melancólica e chega na determinação de uma mulher lutando por seus direitos.

“Mary Shelley” apresenta alguns problemas na montagem (por vezes apressada) e no design de produção tímido. O mesmo não se aplica ao seu roteiro e ao desenvolvimento de personagens, dois elementos que oferecem muitas reflexões sobre o papel da arte e das experiências cotidianas na criação artística. É por isso que “Frankenstein” se tornaria um deleite ainda maior para os fãs se o circuito completo de obra, autora e contexto fosse atravessado. É através desse percurso que a arte é exaltada, as trajetórias humanas são conhecidas e os preconceitos de uma época enfrentados.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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