Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A Excêntrica Família de Gaspard (2017): boas atuações não compensam fraco roteiro

Filme francês com bons atores tenta levar o espectador à autoanálise, mas escorrega num roteiro confuso com conflitos demais e desenvolvimento de menos.

Há inúmeras obras na sétima arte sobre crises de identidade. Explorar a psique humana sempre foi alvo de fascínio porque, afinal de contas, quem não quer se conhecer e se aceitar melhor? “A Excêntrica Família de Gaspard” é uma dramédia alegre e inusitada que procura explorar esta contenda no protagonista, mas que tristemente se perde num roteiro disperso e sem foco.

Gaspard (Félix Moati, de “Insubstituível”, leve e natural no papel) mora longe da família e propositalmente se mantém afastado há bastante tempo. Com seu pai (o divertido Johan Heldenbergh, de “O Zoológico de Varsóvia”) perto de se casar novamente, ele precisa retornar ao zoológico (sim, zoológico) da família onde moram os noivos e seu irmão (Guillaume Gouix, de “22 Balas”) e irmã (Christa Théret, de “A Filha do Patrão”, roubando todas as cenas), que está sempre usando uma pele de urso. Ele então oferece dinheiro a uma estranha que acaba de conhecer para acompanhá-lo.

A presença da falsa namorada (Laetitia Dosch, de “Jovem Mulher”) serve para que ela guie o olhar do público naquela família tão incomum. Muito bem no papel, Dosch traz o misto certo entre maravilha e choque ao descobrir as bizarrices daquele lar. Aqui há um bom acerto do roteiro, pois esse artifício usado para apresentação de mundo funciona bem e gera os diálogos mais fluídos do longa.

Pena que essa qualidade não se mantenha no desenvolvimento da trama. Apesar do bom início, onde se apresentam muito bem os personagens, o roteiro os direciona para tantos lados diferentes e só decide qual deles é o escolhido tão no final que perde impacto e causa estranheza. Esta falta de decisão torna a tarefa de acompanhar a evolução dos personagens inviável e perde o espectador.

O conflito principal gira em torno de Gaspard. Logo é revelado que ele contratou Laura (a falsa namorada) porque está na esperança de que sua presença o livre de um interrogatório que certamente sofreria se fosse sozinho. Tendo sido o filho preferido, sempre elogiado por suas ideias e invenções, havia muita expectativa de que alcançasse enorme sucesso na cidade grande. Evitar sua família há tanto tempo é sua maneira de fugir do momento em que será confrontado com sua realidade. É um ótimo ponto de partida para uma história, mas tem um desenvolvimento esquisito e uma conclusão confusa.

Aliás, conflitos é o que não falta. São numerosos e os roteiristas se perderam ao tentar conduzi-los. Há aqueles que aludem ao fato de crescer num lugar afastado da sociedade, que aparecem nas conversas entre Gaspard e seu irmão, conversas essas que também mostram um sentimento de abandono por parte do irmão; existem sentimentos mal resolvidos da irmã em relação ao primogênito da família e a algo mais que nunca fica claro; o pai que parece mal resolvido com seu passado amoroso e incerto sobre o próximo passo… são muitos enredos apresentados e desenvolvidos de forma fraca, a maioria lamentavelmente se perde ao longo do tempo de projeção.

Se Antony Cordier (“Para Poucos”) erra no roteiro escrito a seis mãos, acerta na direção. Nada excepcional, é verdade, mas é um trabalho correto e faz bom uso das belas panorâmicas que o cenário implora para ter. É uma boa parceria com o diretor de fotografia Nicolas Gaurin (“Os Belos Dias”), que usa bem a luz natural para trazer um ar quase fantasioso para o zoológico. Destaque também para a adorável cena de dança entre os irmãos, que logo vira uma dança a dois entre o casal principal e é muito bem pontuada por luzes alaranjadas e pontilhadas de um globo de espelhos que se assemelham a faíscas, dizendo muito sobre o desejo ardente nascendo entre eles e o ciúme fervente da irmã.

No final das contas, “A Excêntrica Família de Gaspard” ainda diverte dentro de sua esquisitice. O cenário onírico e os diálogos inusitados valorizados por ótimas atuações seguram o espectador num filme indeciso e confuso, que pode até acertar no tom leve para lidar com inseguranças humanas, mas não inspira ninguém a uma autoanálise.

Bruno Passos
@passosnerds

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