Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 01 de setembro de 2018

As Herdeiras (2018): uma jornada de autoconhecimento

Um dos destaques do Festival de Berlim, “As Herdeiras” é um filme que dialoga com uma geração normalmente negligenciada pelo cinema. Entre a sensibilidade das personagens e o pragmatismo visual, a obra é um delicado retrato sobre se conhecer mesmo com a idade avançada

A terceira idade raramente é vista como personagem principal no audiovisual. Para cada filme com protagonistas acima dos sessenta anos é possível encontrar milhares de produções que nem ao menos utilizam personagens idosas com alguma relevância para a trama. Desta forma, quando um diretor se propõe a trabalhar com um núcleo composto essencialmente por pessoas mais velhas, é possível enxergar a obra como uma forma de resistência. E, na sua essência, resistir é o que motiva a protagonista em “As Herdeiras”.

Chela (Ana Brun) vive com Chiquita (Margarita Irun), e as duas se veem obrigadas a venderem os bens herdados da família para conseguir sobreviver à crise financeira. A situação se agrava quando Chiquita é presa por não quitar algumas de suas dívidas. Chela precisa então lidar com a solidão e os problemas financeiros, ao passo que percebe nunca ser tarde para se conhecer melhor.

Desde o começo do filme é possível notar uma postura passiva e, ao mesmo tempo, de resistência por parte de Chela. É ela que, ao início do longa, observa escondida estranhas invadindo sua casa para adquirir seus bens. Essa abertura nos diz tudo o que precisamos saber sobre ela. O mesmo olhar a acompanha ao longo da obra, ganhando um leve brilho ao se deparar com novas descobertas e ao se permitir ir além do seu pequeno mundo de aceitação.

Isso faz de Chela a protagonista perfeita para a trama. É ela que precisa dar o próximo passo rumo ao crescimento pessoal. Por outro lado, Chiquita parece nem ao menos se importar com a vida que a espera na prisão. Sua independência é forte e tão bem demonstrada a todo momento, que não há estranhamento na forma como ela parece se sentir tão confortável na cadeia quanto se sente em sua própria casa.

E nesse sentido, a resistência de Chela é dupla. Ela parece não querer mudar. Se conforma com seu lugar no mundo. O tédio das longas horas quando ela espera uma cliente ao começar o trabalho como “taxista particular” é encarado com certa tranquilidade. Ao mesmo tempo, ela resiste à sociedade em que vive: não precisa se afirmar, mas não demonstra em momento algum a forma como está ligada à Chiquita.

E a maneira como tudo isso é guiado pela direção cuidadosa e muito particular de Marcelo Martinessi (que também assina o roteiro) busca fugir de convenções. Relações homoafetivas são sugeridas, mas nunca explicitadas. O protagonismo feminino também é tratado não como um objetivo, mas como uma consequência. Martinessi consegue com isso realizar um filme cujo elenco principal é totalmente feminino, sem assumir qualquer fundamentação no movimento feminista. Seu projeto tem apenas a preocupação de olhar para estas personagens sem o preconceito que o cinema às vezes parece demonstrar.

Essa abordagem é reforçada pela fotografia, que opta em sua maior parte pelo uso da câmera parada e contemplativa. Se por um lado isso torna o filme lento, por outro nos faz olhar diretamente para as personagens. Não é possível escapar dos olhares pesados ou da melancolia de uma cena. Somos observadores limitados pelo enquadramento, da mesma forma como Chela é limitada pela fresta da porta por onde observa as pessoas que vem à sua casa comprar sua herança.

O diretor de fotografia, Luis Armando Arteaga, também utiliza uma pequena profundidade de campo para quase todas as cenas, na tentativa de não tirar a atenção do público daquilo que realmente importa: as personagens. O roteiro não busca contar uma história que não tenha as personagens como centro. E Arteaga trabalha para que o olhar do público não se perca ao que está fora do raio de ação deste meio.

Embora careça de ação e dinamismo explícito, “As herdeiras” é um filme que busca falar sobre como é possível viver novas experiências a qualquer momento. O olhar para a protagonista é sempre de curiosidade e contemplação, permitindo que o público possa admirar sua evolução na tela. Quando Angy (Ana Ivanova) surge na projeção, ela é mais uma força que busca oferecer um novo horizonte para a protagonista do que uma tentativa de criar um embate entre gerações. Porém, mesmo servindo como ponte para novas experiências, não há qualquer mudança de olhar. A obra consegue assim se manter consistente na narrativa. É um jornada sobre se permitir viver e vencer nossas inseguranças.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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