Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 27 de outubro de 2017

As Duas Irenes (2017): o eu e seu múltiplo

Apostando na capacidade das protagonistas adolescentes e explorando a visualidade soberba da natureza interiorana, essa trama simples torna-se um importante enredo identitário.

                                                                           À M.

“Na modorra das tardes vadias” da vida do interior, Irene (a primeira, Priscila Bittercourt) descobre que seu pai (Marco Rica, de Chatô: o Rei do Brasil) tem uma outra família, e uma outra filha chamada Irene (a segunda, Isabela Torres). A descoberta leva a menina a uma jornada de autodescoberta e busca identitária, temperada por crises familiares e juvenis com leves toques de erotismo pré-púbere. Belissimamente guiado pelo roteiro tradicional-mas-não-quadrado do também diretor Fabio Meira (co-roteirista de “Bingo: o rei das manhãs”) e sobre os planos orgânicos, uma mistura de Tarkovsky com Lavoura Arcaica, da fotografia de Daniela Cajías, essa pequena produção nacional é mais uma que provavelmente será esquecida pelos cinéfilos brasileiros tão logo sair dos cinemas. Será que um dia esse cenário mudará?

Sem deslumbrar-se com suas próprias capacidades inventivas, que aparecem inúmeras vezes diante de um roteiro simples, direto e linear, mas tampouco contentando-se com um resultado medíocre, Meira e sua equipe (que somam ainda a boa montagem de Virginia Flores, o ótimo som de Simone Alves, além de um trabalho de decoração primoroso de Mario Surcan) orquestram essa pequena narrativa de maturidade (coming of age) a partir de signos muito familiares à realidade das pequenas cidades brasileiras.

Traços históricos, como a herança arquitetônica e de costumes coloniais e as relações hierarquizadas de gênero são os elementos da realidade levados à tela. Por exemplo, enquanto as mulheres da casa fazem os fuxicos e fofocas típicos da sociabilidade feminina, seu pai encarna o espírito da macheza dos chefes de família tradicionais. É Irene (a primeira), em sua jornada, que rompe com o tradicionalismo ao chocar-se com o espelho da vida dupla do pai que tem uma outra família. A rebeldia da protagonista, que não deixa de ser pueril, também sinaliza os sinais dos tempos de mudança geracional, rompendo com velhos hábitos e padrões de obediência e hierarquia. Não a toa, por exemplo, que a menina é a única vista interagindo com a “ama” da casa, Madalena (a experiente Teuda Bara), herança direta do escravismo e da subsequente dominação de raça e classe que persistem na história nacional. Posteriormente, quando a protagonista se imiscui entre a segunda família do pai, é o nome da empregada (bíblico e carregado de significações sobre a imagem feminina) que ela irá adotar como o seu.

Esse jogo de espelhos e rimas narrativas vai sendo trabalhado durante todo o filme, do primeiro ao último ato, adornado belamente pela mistura árida e exótica dessa cidade sem nome em que se situa a história. Da mesma forma como a segunda Irene é um espelho de sua mãe (a ótima Inês Peixoto) e já começa a viver as desilusões amorosas que essa mulher também passa, a primeira Irene vê-se desconectada do modelo feminino de sua família, porém parece encontrar em si, nas longas reflexões que tem diante do espelho, traços do pai com quem tem uma relação cada vez mais dúbia e imprecisa. Ao longo da história, ainda, as duas Irenes tornam-se amigas e têm a chance de trocar ludicamente de papéis, “máscaras” e vestuários em certas ocasiões. Esse recurso à la Pesona(1966), filme de Ingmar Bergman que foi um dos mais bem sucedidos em trabalhar a ideia do duplo, manifesta-se com muita naturalidade e, ainda assim, força através das cenas e falas: “Você sabia que existe uma outra Irene?” – diz a menina (a primeira Irene) no meio de um almoço de família em que se celebra o aniversário do patriarca. Em outro momento, a mesma garota grita seu nome diante de um penhasco, mas a irmã (a segunda Irene) parece não entender, pois ainda pensa que seu nome é Madalena, e entende que a menina está chamando por ela (“gastando seu nome”). São pequenos indícios desse tipo que surgem ao longo de toda a trama e culminam no ápice das duas últimas cenas finais em que o diretor cria sua própria versão da fusão das duas faces que eternizou o filme de Bergman.

Numa história de amadurecimento não poderia faltar a dimensão da sexualidade, que se expressa entre as Irenes na forma de opostos simétricos. Ambas na faixa dos treze anos, enquanto uma (a segunda) já vive seus primeiros romances, a primeira fita um corpo que tarda em se desenvolver, enquanto toma para si, como se fossem seus, os casos da irmã/amiga, reiterando a ideia de fusão identitária.

As histórias comezinhas muitas vezes são mais atraentes que as grandes tramas, excessivas em viradas de enredo e estímulos sensoriais. Narrativas construídas como artesanato audiovisual, que ganham forma e conteúdo pela vida que seus atores e atrizes (aliás, ótimas protagonistas e um elenco no geral fabuloso) emprestam às incorporações das personagens, mais o trabalho árduo de uma equipe que, especialmente no Brasil, é mal remunerada e muitas vezes conta com poucos recursos técnicos. Não à toa o filme coleciona prêmios nacionais, como o de melhor direção de arte e roteiro no Festival de Gramado, e internacionais, além de ter sido apresentado no último Festival de Berlim. Mais uma prova de que, dadas as condições (políticas, econômicas e materiais) e apesar de nosso “jeitinho” humilde de fazer cinema, assim como os já criticados aqui Joaquim e Corpo Elétrico, alguns de nossos filmes são simplesmente excelentes.

Vinícius Volcof
@volcof

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