Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Corpo Elétrico (2017): potência de vida

Filme com temática gay se insere num conjunto de filmes nacionais contemporâneos, que tem abordado de forma direta e eficiente as questões mais presentes da realidade brasileira.

Eu canto o corpo elétrico.

As legiões daqueles a quem amo
me envolvem e são por mim envolvidas,

Pois não me largarão enquanto eu não
For com eles e atende-los

E purifica-los e vigorizá-los
Inteiramente com o vigor da alma.

Com o título inspirado no poema “Eu Canto o Corpo Elétrico”, de Walt Whitman no relevante “Flores da Relva” (1855), a produção nacional “Corpo Elétrico” é um drama cotidiano e comezinho sobre a vida de um jovem gay de classe média-baixa em São Paulo e as pessoas em seu entorno. Sem grandes acontecimentos ou viradas, a narrativa parece apostar numa espécie de naturalismo espontâneo que destaque que, a parte das peculiaridades do conjunto de personagens retratados (a travesti, o operário negro e gay, a mãe solteira, os migrantes e imigrantes e etc), e acima das diferenças de orientação sexual ou identidade de gênero, seus dramas são muitos semelhantes aos da maioria das pessoas que partilham desse contexto social.

A história acompanha a rotina de trabalho de Elias (o excelente e até então desconhecido Kelner Macêdo) numa fábrica de confecções no Bom Retino, bairro com tradição têxtil na cidade de São Paulo. Migrante nordestino, o estilista relata seu afastamento da família, suas aventuras sexuais (o filme abre com uma cena de sexo bastante gráfica) e outros meandros da sua existência que ressaltam essa elétrica jovialidade do personagem e também certo grau de indefinição desse menino que mal consegue projetar uma imagem de si para daqui cinco anos.

Composto sobretudo por atores e atrizes poucos conhecidos, o elenco consegue reunir nomes promissores, como o jovem Lucas Andrade no papel de Wellington, e o luso-guiniano Welket Bungué, esse ano já visto em “Joaquim, como Fernando. Há também a participação especial de nomes mais conhecidos do público gay ou queer, como a funkeira Linn da Quebrada e a drag queen Marcia Pantera (cuja impressionante história de vida e o passado no vôlei profissional pode ser lida nesse artigo da Vice). Somado às outras atuaçõesm mesmo a de papéis secundários, se tem em tela um grupo bastante espontâneo, produzindo cenas bastante fluídas de festas e interações entre esses companheiros de trabalho.

Por isso “Corpo Elétrico” tem sido apontado como um filme que, para além da temática gay, mira nas relações entre trabalhadores. Alguns dizem que se deixa entrever uma crítica sobre assimetrias de classe. Não que seus personagens estejam mobilizando uma forma revolucionário de organização contra o sistema capitalista – muito pelo contrário, o realismo do filme parece mostrar mais sobre como esse sistema se manifesta num contexto observável, como o de uma pequena fábrica de uma metrópole periférica –, mas muitas vezes o que se manifesta é como esses operários também desejam os bens materiais e privilégios dos ocupantes das classes superiores. Um exemplo nesse sentido é o “bate-e-volta” dos amigos de Elias (que mistura operários da fábrica e travestis performáticas) na casa de praia de um homem com quem Elias se relaciona (um professor universitário mais velho que aparenta uma predileção por seus efebos). Nessa cena, fica destacada a dimensão do desejo de seus amigos do trabalho diante das condições de vida do professor (uma casa na praia, na vida em classe média, ainda é um sinal de status). Há ainda um contraponto narrativo bem posicionado que opõe a bonança do acadêmico com as projeções de um casal composto por um dos colegas de fábrica de Elias que decide se casar à despeito de suas limitações financeiras, e a reação solidária do grupo para ajuda-los. A cena se encerra num belo casamento simbólico do jovem casal coordenado pelos amigos gays, travestis e também heterossexuais.

A dinâmica de solidariedade se repete ainda em outras dimensões, como quando um dos colegas da fábrica (um homem heterossexual de meia idade) oferece uma festa em sua casa (na verdade de seus pais) e a certa altura testemunha o sexo em sua própria cama entre Elias e Wellington. A abordagem do sexo sem tabu, do corpo masculino, do homem gay ou hétero, trans ou travesti produz uma reação reflexiva nos personagens, e se esperamos que aquele episódio originasse um conflito a ser explorado até a conclusão, posteriormente notamos que para os próprios personagens a cena foi assimilada com relativa normalidade. Ou seja, as pessoas, por mais improváveis que sejam, têm a capacidade de aprender (no caso específico da temática desse filme, aprender a lidar com as diferenças).

Talvez a única falha na abordagem sobre o tema seja o certo apagamento sobre a sexualidade feminina. Embora o foco escolhido seja claramente a dos afetos homossexuais e as colegas de fábrica de Elias também tenham passagens sobre seus afetos e sexualidade (uma delas é uma mãe solteira que começa a se apaixonar por um colega de fábrica imigrante), ainda assim vale a pena pensar que um filme com a mesma temática e a abordagem postas aqui, mas sobre a sexualidade feminina, talvez tivesse uma recepção menos elétrica que este filme. O que digo é que a sexualidade feminina ainda tem sido abordada (salvo algumas exceções, é claro) de forma muito menos poética e aberta que a masculina, mesmo a homossexual. Como exemplos, vale pensar em “Ninfomaníaca” (2013), de Lars von Trier, cujo título por si só remete a uma patologia; ou no chileno “Jovem Aloucada” (2012), de Marialy Rivas, mais corajoso ao abordar o tema, mas ainda mostrando essa visão enlouquecida que temos sobre a sexualidade feminina.

Há quem duvide de que todo aquele que
P
erverte o corpo
Esconde a si mesmo?

E de que todo aquele que profana os
Vivos seja tão perverso quanto quem
Profana os mortos?

Primeiro longa do mineiro Marcelo Caetano, 34 anos e cientista social por formação. Antes já havia trabalhado com a temática e seus protagonistas recorrentemente se chamam Elias. Assistente de direção em “Tatuagem” (2013), de Hilton Lacerda (que co-roteriza a história com Gabriel Domingues), o diretor também fez a produção de elenco de “Aquarius” (2016) e tem nesse seu primeiro longa metragem a produção associada de Anna Muylaert (“Mãe Só Há Uma). Com isso, podemos entrever as redes que formam uma das vertentes do cinema nacional atuais, de produções mais independentes e diretores autorais.

Assim, toda a equipe dessa pequena produção representa os frutos do cinema nacional atual, em que novos nomes surgiram e tem conseguido sustentar uma sequência de produções eficientes, de qualidade estética e, mais importante, abordando temas relevantes para a realidade brasileira contemporânea, como urbanidade, moradia, relações raciais, segurança e, no caso de Corpo…, gênero e sexualidade.

Sem deixar de escorregar em notáveis limitações técnicas – como uma direção de som ruim, que muitas vezes impossibilita a compreensão dos diálogos –, a produção parece adotar um realismo estético também por falta de opção. Não parece haver estrutura para montar takes mais elaborados, mas essa simplicidade combina com a narrativa que opta por se construir por meio de uma série mais ou menos soltas de episódios da vida de seu protagonista, sem buscar nem ao menos um final fechado que apresente respostas. E mesmo sem enfeites, ainda existe uma estética especifica desse realismo fabril retratado em tela, pela inventividade sensível da direção.

Presença contida até mesmo no circuito de cinema alternativo, o filme tem tido alguma ressonância em festivais e em análises críticas e técnicas. Num plano mais geral, representa a expansão de filmes com a temática LGBT, que pode ser observado em exemplos latino-americanos (como a já mencionada “Jovem Aloucada”, mas também na recente produção Brasil-Argentina “Esteros”, de Papu Curotto e Ignacio Rogers) e até mesmo numa pesquisa rápida no catálogo da Netflix (são mais de cinquenta títulos até agora). Diante de variadas abordagens e da ascendente presença de diretores gays e diretoras lésbicas abordando suas próprias questões, podemos entender a importância da legitimidade para falar de certas questões e também da emergência que esses temas atuais sejam debatidos.

E se o corpo não valer tanto quanto a
Alma?

E se o corpo não for a alma, o que será a
Alma?
[trecho I de ‘Eu canto um corpo elétrico’ (1855/1881), de Walt Whitman, com tradução de Ivo Barroso. Visto aqui.]

Vinícius Volcof
@volcof

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