Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 28 de setembro de 2017

First They Killed My Father (2017): Jolie sobre os horrores do regime comunista no Camboja

Em parceria com a Netflix, estrela norte-americana dá continuidade à sua carreira por trás das câmeras com mais um drama humano que se passa em um ambiente opressor. "Guerra de fundo" dessa vez é a do Vietnã

Se em seu primeiro trabalho como diretoria (“Na Terra do Amor e Ódio” – 2011), Angelina Jolie escorrega ao não estabelecer com precisão o contexto geral da Guerra da Bósnia no início dos anos 1990, construindo personagens e situações um tanto quanto caricatas e maniqueístas, neste “First They Killed My Father” a cineasta utiliza os olhos de uma criança cambojana para ir a fundo nos horrores da guerra e do regime comunista do Khmer Vermelho no país. Isso tudo sem esquecer, em uma breve e eficiente introdução das razões que levaram à instalação do terror na região, e como os Estados Unidos muitas vezes agem como um cão correndo atrás do próprio rabo, procurando destruir ditaduras e acabar com problemas que eles próprios ajudaram a criar.

O filme é um projeto de Jolie em parceria com a Netflix, escrito e dirigido pela estrela norte-americana a partir do livro homônimo de Loung Ung, a cambojana que, na vida real, era a criança protagonista da história e que presenciou tudo o que vemos em tela. No longa, somos apresentados a uma família de nove pessoas que mora na capital do Camboja e leva uma vida confortável quando, com o processo de retirada das tropas militares dos Estados Unidos da área, em 1975, após o fracasso da Guerra do Vietnã, o regime do Khmer Vermelho começa a ocupar a cidade, expulsando todos de casa, confiscando seus bens e os levando a trabalhar forçadamente em campos de concentração. Tudo em nome da “revolução” e do “líder supremo”, o qual eles chamam de ‘Angkar’. Neste sentido, é importante notar que, em tempos de ressurgimento de discursos de ódio, extremismos de ambos os lados levam inexoravelmente ao mesmo lugar: sangue, ditadura, ausência de liberdades individuais e, como sempre, o povo sendo esmagado ao mesmo tempo que tem de sustentar tudo isso.

Assim, acompanhamos a saga dessa família sob a perspectiva da menina Loung (interpretada por Sareum Srey Moch), a mais nova dentre os nove integrantes deste núcleo, com cerca de cinco anos de idade quando o enredo começa. A câmera subjetiva, dessa forma, trabalha com ângulos inclinados para que vejamos tudo a partir do olhar da criança, o que provoca uma angústia profunda. Se, por um lado, somos frequentemente postos frente a frente com imagens de ‘camaradas’ olhando diretamente para a tela – algumas vezes sorrindo “amigavelmente”, outras com o semblante mais sério -, de cima para baixo e sempre com uma luz forte por trás, reforçando o lado lúdico que pedem os acontecimentos quando observados sob um olhar infantil, por outro sabemos exatamente que aquilo que ela pensa estar presenciando inicialmente não corresponde com o que virá em seguida, o que estabelece um tensão constante: temos consciência enquanto ‘não-crianças’ que, a qualquer momento, algo terrível vai acontecer e a menina não faz ideia disso.

Embora essa seja uma empreitada particularmente significativa para Jolie (como ativista em todo o mundo, um de seus filhos é do Camboja), e talvez por isso, uma das grandezas fundamentais para que “First They Killed My Father” funcione enquanto obra dramática é o fato dele conter somente atores e atrizes cambojanos, sendo todo falado em sua língua nativa. Pode parecer apenas um detalhe para espectadores mais desapegados, e até um defeito para o público mainstream, mas a decisão confere fidelidade à real história vivida por aquelas pessoas e contribui para que o drama seja sentido de maneira mais visceral. Não tem coisa mais fria e deselegante do que contar a história dos mineiros chilenos, por exemplo, falada toda em inglês (“Os 33” – 2015), ou mesmo de conflitos no Leste Europeu de equivalente forma (o próprio “Na Terra do Amor e Ódio”).

Neste sentido, é realmente de se chamar a atenção como Sareum Srey Moch consegue condensar toda essa visceralidade de modo tão seguro sendo apenas uma garotinha de nove anos. O seu olhar frio perante a perda de sua antiga vida, a lágrima delicada que escorre do seu rosto quando o irmão lhe agride por faltar comida à família no campo de concentração, o seu desespero ante ao horror vivido e, principalmente, (e aqui vai uma aviso de SPOILER para os mais puristas que realmente não desejam saber nada do longa. Pule para o próximo parágrafo) os seus sentimentos dúbios no clímax do filme, quando, após ser feita a lavagem cerebral típica de regimes totalitários, ela sente o impulso de partir para defender o soldado comunista a ser espancado pelo povo oprimido. Algo que inevitavelmente me levou a lembrar da obra-prima de George Orwell, “1984“, e já marcou a sequência como uma das impactantes deste 2017. Em dado momento, ela olha para o homem e enxerga seu pai assassinado pelo Khmer Vermelho (isso não é exatamente spoiler, não é?), o que provoca-lhe compaixão e a faz afastar-se do local. Depois, ela volta e somente olha para o moribundo, sem nenhuma hesitação ou expressividade. Uma aula de como atuação, fotografia e montagem podem atuar conjuntamente em prol da dramaticidade de uma cena.

Do ponto de vista da construção de trama, no entanto, alguns pequenos percalços impedem que seja este o trabalho perfeito de Angelina Jolie. Ilustrando de maneira crua e seca como funciona uma ditadura comunista, a diretora não é tão hábil em termos de concepção de roteiro para que essas passagens não se tornem repetitivas e até um tanto quanto maçantes em determinados instantes. O filme não é exatamente curto – são pouco mais de 140 minutos de duração – e perto da transição do segundo para o terceiro ato, temos a sensação de que algumas cenas não mais contribuem para a costura da narrativa. O modus operandi do regime já foi mostrado, os dramas pessoais dos personagens já estabelecidos e a suposta lavagem cerebral já realizada; há aquele período de uns quinze ou vinte minutos em que parecemos estar acompanhando mais do mesmo, o que ‘infla’ desnecessariamente o enredo. No caso, não chega a comprometer significativamente o resultado final, mas incomoda pela redundância.

Por outro lado, Jolie mostra destreza ao discutir temas relevantes e relativamente atuais da geopolítica mundial como subtextos do que estamos acompanhando em uma primeira camada. No começo do filme, por exemplo, somos introduzidos a discursos do então presidente dos EUA, Richard Nixon, nos quais ele reitera o respeito à neutralidade do Camboja enquanto componente geográfico do sudeste asiático, onde se desenrolava a guerra no Vietnã, só para depois vermos o bombardeio do país sobre as cidades cambojanas e a luta desenfreada por conquistas de território. Em seguida, fica claro como isso inflamou a população local a “comprar” a cartilha ideológica soviética anti-americana e, após a retirada das tropas militares do lado capitalista, possibilitou a ascensão de um regime totalitário que causou ainda mais miséria ao seu povo. Qualquer semelhança com a situação observada no Iraque neste século e o surgimento do Estado Islâmico na região não é mera coincidência. Em que pese discorrer sobre os horrores do comunismo, Angelina Jolie contextualiza o momento histórico de Guerra Fria e não exime ninguém de culpa no ocorrido, o que demonstra sensatez de sua parte. Evidente que não há aprofundamento neste sentido, até por não ser o foco do longa, mas a faísca de discussão é bem colocada.

“First They Killed My Father” é mais uma das obras de Angelina Jolie – talvez a mais bem resolvida – em sua breve carreira por trás das câmeras onde fica perceptível a sua devoção por histórias humanas em um ambiente opressor. Seja a pessoa feita prisioneira por comunistas, japoneses ou sérvios, sendo ela cambojana, norte-americana ou muçulmana, seu fascínio parece ser sempre sobre a luta delas por liberdade e libertação, o que diz muito sobre suas posturas individuais como cidadã e seu ativismo mundo afora.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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