Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de fevereiro de 2017

O.J.: Made in América (2016): Fama e Racismo correm paralelos

Documentário de 7h47m é uma obra de arte documental sobre uma história que, por si só, renderia a dezenas de filmes.

Orenthal James Simpson, mais conhecido como O.J. Simpson, é um dos maiores jogadores de futebol americano de todos os tempos. Suas incríveis jogadas, que datam desde sua passagem pela Universidade de Los Angeles, estão registradas como algumas das mais impressionantes e originais já vistas no esporte. Porém, ao ouvir ou ler o seu nome, só nos vêm a cabeça os dois assassinatos que ele, supostamente, teria cometido. Para entender os motivos que levaram à destruição de todo o legado construído pelo atleta, empresário e ator, o impressionante documentário “O.J.: Made in América” – não confundir com a também ótima série ficcional “American Crime History: The People vs O.J. Simpson” – conta e mostra não só a trajetória do retratado, mas todo o ambiente político, cultural e discriminatório que contribuiu abundantemente para transformá-lo no mais popular “criminoso inocentado pela justiça” de todos os tempos.

A história de O.J. remonta os anos 40, quando a segregação racial era comum no sul dos Estados Unidos. Temendo a violência praticada gratuitamente contra a população afroamericana, milhares de pessoas se mudaram dos estados mais ao sul do país para lugares menos nocivos, como a Califórnia e Nova York. É nessa “nova” Los Angeles que nasce um garoto que sempre teve sex appeal, muita lábia e um extremo talento esportivo. Crescendo em uma comunidade pobre, Simpson poderia ter se apegado às causas de seu “povo”, mas esse assunto sempre foi tratado por ele como uma dificuldade, já que seu propósito de vida era somente vencer e ficar famoso. Depois de brilhar e bater recordes em sua carreira como jogador universitário, ele ficou milionário e passou a se distanciar cada vez mais dos crescentes movimentos contra o abuso de força e violência infligido sobre a população negra da cidade. É somente quando O.J. fica frente a frente com a justiça, ou a falta dela, que entendemos a importância das causas ignoradas por ele até então.

É com extrema inteligência e brilhantismo que o diretor documentarista Ezra Edelman (“30 for 30: Soccer Stories”) traça os paralelos sobre a escalada da violência policial defronte a comunidade negra em Los Angeles e a vida do ex-atleta. Contando em detalhes os episódios de maior repugnância desse combate de uma força só, o documentário esfrega na cara do espectador a história de uma sociedade que respira injustiça. Logo no início, quando estas narrativas nos são apresentadas alternadamente com a trajetória de O. J. Simpson, não fica muito claro o motivo desta exposição, porém, quando o crime ocorre e o julgamento vira a grande estrela do filme, tudo passa a fazer o maior sentido do mundo.

Originalmente produzido como uma minissérie de cinco episódios de uma hora e meia de duração, pelo canal de TV esportivo ESPN, o formato de documentário longa metragem ganhou força com a recepção extraordinária à série, levando os produtores à montar tudo como um grande filme de sete horas e quarenta e sete minutos. Decisão esta que se mostrou absolutamente assertiva, pois o longa têm ganho quase todos os prêmios principais de todos os festivais e premiações aos quais é indicado, incluindo uma indicação ao Oscar 2017 como Melhor Documentário Longa-Metragem. Mas não se engane, nem ouse se afastar, pela duração do filme, porque ele é tão bem realizado e tão formidavelmente construído que estas longas sete horas não são sentidas.

Como elogios nunca são demais, o que dizer do cast de pessoas entrevistadas? Fica até difícil entender como praticamente todas as pessoas que passaram pela vida de O.J., positivamente ou negativamente, aceitaram fazer parte do projeto. Outro ponto a se destacar é a quantidade de material visual e auditivo que a equipe conseguiu reunir e editar perfeitamente para o longa. Aparentemente nada escapou da produção e eles conseguiram ter acesso até mesmo às anotações que o atleta fez em rascunhos durante seu famoso julgamento.

A única ressalva ao filme é sobre a retratação um tanto rápida de um outro crime e posterior julgamento que necessitavam de um pouquinho mais de espaço para serem entendidos e digeridos apropriadamente pelo espectador.

“O.J.: Made in América” é um documentário absolutamente imperdível, que escancara brilhantemente – sem tomar partido ou fazer apologias vazias – a injustiça e a eterna disputa racial nos Estados Unidos.

Rogério Montanare
@rmontanare

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