Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A Garota no Trem (2016): um suspense morno com um tema relevante

Sustentado por um elenco competente e um uso surpreendente de uma situação terrível da vida real, esse suspense baseado no livro homônimo se mostra apenas mediano.

Baseado no livro homônimo de Paula Hawkins, com roteiro de Erin Cressida Wilson (“Secretária”) e dirigido por Tate Taylor (“Histórias Cruzadas”), “A Garota no Trem” conta uma única história, pelo ponto de vista de três mulheres.

A deprimida e instável Rachel (Emily Blunt) é uma divorciada alcoólatra que, pela janela do trem para Nova York que pega todos os dias, idealiza a vida da bela Megan (Haley Bennett) e de seu marido Scott (Luke Evans). Megan é vizinha de Anna (Rebecca Ferguson) e trabalha como babá para esta, cuidando da filha pequena de Anna e Tom (Justin Theroux), ex-marido de Rachel. Quando Megan desaparece, Rachel se torna suspeita, trazendo segredos de todos os envolvidos.

Durante todo o longa, vemos as três mulheres passarem por situações de abuso, em menor ou maior grau, que são vistas dolorosamente como cotidianas e até relevadas pela nossa sociedade, que possui sim uma tendência androcentrica. É importante ressaltar a feliz escalação de Allison Janey, uma atriz de peso e renome, para viver o papel da detetive que tenta desvendar o sumiço de Megan, por dar automaticamente credibilidade àquela figura de autoridade.

Mas até mesmo a detetive tende a dar mais crédito às declarações feitas pelos personagens masculinos, como os maridos de Anna e Megan e o psicólogo desta última, Dr. Abdic (Edgar Ramirez). Nenhuma das figuras enfocada pela trama é exatamente inocente, mas as agressões, sejam elas psicológicas ou físicas, que as três protagonistas passam, são reflexos assustadoramente reais do que acontece na vida real.

Apesar do roteiro de Wilson sem bem problemático – personagens somem do nada, a lógica de algumas situações se mostra duvidosa e alguns diálogos beiram a breguice -, o texto e o próprio diretor Tate Taylor usaram de forma inteligente um tipo de abuso bem comum, o gaslighting, como uma ferramenta narrativa.

O gaslighting é quando o abusador se utiliza da manipulação de fatos para distorcer a realidade da pessoa abusada, fazendo com que a sociedade e até mesmo a própria vítima questionem sua sanidade, algo que cai como uma luva para uma narrativa com múltiplos pontos de vista como esta.

O trio de protagonistas entrega performances sólidas, aproveitando justamente esta deixa narrativa. Emily Blunt encarna com vigor a aparentemente patética figura de Rachel, com a personagem tateando no escuro em busca de algum vislumbre de felicidade, presa em um círculo vicioso de obsessão e vício. Haley Bennett entrega uma Megan que luta para encontrar a própria identidade, se definindo apenas pelo papel que lhe é dado pelos homens ao seu redor. Já Rebecca Ferguson sofre com sua Anna, haja vista esta ser a personagem mais “rasa” das três, não tendo muitas oportunidades para brilhar, embora o faça quando tem espaço para tanto, especialmente no terceiro ato.

Os homens do elenco são sempre encarados pela câmera com certa desconfiança e até mesmo o desempenho destes se mostra forçado, com destaque negativo para Justin Theroux, que se mostra um canastrão desde sua entrada no filme. Edgar Ramirez e Luke Evans também não se saem muito melhor, embora as interações dos dois com Blunt e Bennett ajudem na construção de seus arcos.

Com exceção da boa sacada narrativa proporcionada pelo roteiro, infelizmente Tate Taylor não impõe um bom ritmo ao filme ou mesmo uma lógica visual mais original, com a paleta de cores da produção, predominantemente fria, remetendo a incontáveis obras mais competentes. A montagem, essencial para o clima de mistério, é um tanto confusa até a metade da projeção, com o excesso de saltos temporais chegando a incomodar um pouco até que o espectador se acostume.

Não por acaso, é mais ou menos neste ponto da projeção em que o longa decide a direção em que levará a história. Até ali, o interesse do espectador era mantido mais por conta do carisma dos atores, especialmente Emily Blunt, do que pelo mistério em si, que avança devagar e sem rumo. Ao final, temos uma obra apenas mediana, sobre um tema que necessita ser falado em voz alta na cultura pop.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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