Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 03 de março de 2016

Ex_Machina: Instinto Artificial (2015): um franco convite à reflexão

Menos um entretenimento momentâneo e mais um impacto intelectual duradouro, o filme tem um roteiro extraordinariamente rico e inteligente, além de atuações impecáveis, mas o final quase compromete toda a obra.

ex-machina-instinto-artificial_t85637_SHx8LVH_jpg_290x478_upscale_q90O lançamento de “Ex_Machina: Instinto Artificial” diretamente para locação no Brasil é a comprovação da falta de critério do mercado cinematográfico pátrio, que privou alguns fãs de sci-fi de conhecerem um dos melhores exemplares do gênero da atual safra. Em terra de “Transcendence” e “Chappie”, “Ex_Machina” é rei.

Caleb (Domhnall Gleeson) é um jovem inteligente que vence um sorteio e tem a oportunidade de conhecer Nathan (Oscar Isaac), CEO da Blue Book, empresa em que trabalha. Mais do que isso, Nathan deseja que Caleb faça o Teste de Turing com Ava (Alicia Vikander), androide que ele criou e que talvez seja o primeiro caso de inteligência artificial de que se tem notícia.

Indicado ao Oscar, o roteiro é inteligente e extremamente rico, um franco convite à reflexão, tornando o filme menos um entretenimento momentâneo – até mesmo por sequências um tanto incômodas – e mais um impacto intelectual duradouro. Tem como núcleo duas faces da mesma moeda: a moeda é a relação entre o homem e a tecnologia; uma face é o fascínio sentido por aquele em relação a esta (e a interação entre eles); a outra é o risco da defasagem humana face às inovações da máquina. Todavia, o plot é tão extraordinário que pipocam diversas outras questões.

Alex Garland elaborou um roteiro magnífico e o executou com uma direção competente. O prólogo é propositalmente acusmático, pois o que interessa é o que ocorre após a entrada de Caleb no building, recebendo seu cartão como chave. O cartão é uma das engrenagens da narrativa, um dos elementos visíveis reiterados que a movem, juntamente com a bebida – Nathan aparece habitualmente ébrio – e a queda de energia. O ingresso no local é filmado em travelling, e a atmosfera oca (sala vazia e música de piano) é a introdução que Nathan merece: aparece como figura não estereotipada, esteticamente surpreendente e bastante informal, além de antipático – constantemente humilha Kyoko (Sonoya Mizuno), simbolicamente nua ou de branco – e arrogante (o oposto de Caleb). Nathan explica que estão em um local de pesquisa, e não numa casa, e as paredes de vidro separando as personagens da paisagem externa são, em sentido figurado, a clausura artificial que a tecnologia impõe ao homem.

O design de produção aposta em cores claras opostas ao vermelho – a cor vermelha, por sinal, tem tripla função: no tapete do corredor e na queda de energia, um vermelho temerário; na luz da fantástica cena de dança, um vermelho sedutor; na resposta de Caleb à Ava, um vermelho falso. Nesse ínterim, a enigmática queda de energia é metáfora clara da interpretação do aprisionamento como sinônimo de segurança.

Garland aposta também numa atmosfera de suspense dentro da ficção científica, como no vidro quebrado nas sessões com Ava (referência a “O Silêncio dos Inocentes”), no termo de confidencialidade da Blue Book (empresa de Nathan) e, em especial, na montagem lenta e na ótima trilha sonora.

Caleb foi sorteado para figurar no centro do Teste de Turing, e o resultado positivo – de que Ava teria consciência – colocaria Nathan na história dos deuses, e não do homem. Esta passagem seria indício de uma abordagem criacionista no longa, aliada a várias outras (a retirada da costela, a citação de Oppenheimer, o livre-arbítrio, a dualidade criador-criatura e outras referências bíblicas). Contudo, a remissão ao evolucionismo (na menção a esqueletos fossilizados e nos rostos na parede) sugere imparcialidade.

A delicadeza das sessões entre Ava e Caleb no pan-óptico acompanhado por Nathan (em uma sala com várias folhas de blocos autoadesivos, insinuando um turbilhão de ideias) rende momentos preciosos, e a montagem (afiliada à teoria da montagem das atrações de Eisenstein) engrandece os complexos temas abordados (amizade, confiança, atração afetiva, sexualidade etc.). As metáforas explícitas – como a do cruzamento (“daria uma visão concentrada, mas em movimento, da vida humana”) – se mesclam com recursos mais sutis (como a inversão de papéis).

Não menos importante é a atuação impecável do trio, com uma linguagem corporal gritante. Alicia Vikander tem o maior desafio, precisando interpretar uma figura ambígua: mecânica, mas sensual (mérito da excelência nos efeitos visuais ao criar seu corpo); ingênua, mas sagaz; e sincera, mas com intenções ocultas. Com postura desleixada, Oscar Isaac interpreta um Nathan de personalidade densa; por sua vez, Domhnall Gleeson expõe sua versatilidade como ator, apesar da unidimensionalidade de Caleb.

Talvez “Ex_Machina: Instinto Artificial” não vire um clássico e não agrade à massa sedenta por ação escancarada, enxergando no longa uma narrativa monótona que alterna entre psicodelia e esquisitice. Porém, o roteiro é rico o suficiente para mexer com o intelecto do espectador paciente (por algumas cenas desconfortantes) e atento (para os questionamentos velados). Só não é um filme grandioso porque não há um grand finale. Na verdade, seu encerramento é quase comprometedor.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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