Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 01 de fevereiro de 2016

Os Dez Mandamentos – O Filme (2016): isso não é cinema

Montado de maneira desastrosa e com interpretações industriais literalmente tiradas de uma novela, é impossível não ver "Os Dez Mandamentos" como algo além de uma produção caça-níqueis.

imageComo faço em todos os meus textos sobre filmes religiosos, lembro aos caros leitores que estamos aqui discutindo sobre um longa-metragem, não sobre fé ou uma igreja específica, qualquer que seja. No caso de “Os Dez Mandamentos”, trata-se de uma adaptação de uma das histórias bíblicas (o livro “Êxodo”) cujos temas ecoam por toda a nossa cultura popular até hoje.

Dirigida por Alexandre Avancini (entre outros) e com roteiro de Vivian de Oliveira, a produção ambiciona fazer um retrato da vida de Moisés (Guilherme Winter), seu nascimento como um escravo hebreu caçado por seus mestres egípcios, sua adoção pela filha do faraó, Henutmire (Mel Lisboa/Vera Zimmermann), sua ascenção como príncipe do Egito, a descoberta de sua verdadeira origem e fuga após a morte de um capataz, até sua ascensão como líder espiritual e libertador do povo hebreu.

No entanto, essa versão se diferencia das demais não apenas por ser feita no Brasil e estrelada por atores tupiniquins, mas por não ter sido feita originalmente para o cinema, mas como uma novela de 176 capítulos, cada um com duração média de 50 minutos. Há uma tentativa de ancorar a trama principal através de uma narração feita pelo sucessor de Moisés, Josué (Sidney Sampaio), que estaria a contar a história para inspirar os soldados hebreus na conquista da terra prometida (algo na linha de “300”), mas nem isso salva a fita de parecer como uma versão estendida de uma recapitulação do folhetim televisivo.

A despeito de alguns valores de produção de “Os Dez Mandamentos” estarem bem acima da média televisiva nacional (especialmente na TV aberta), o que se vê no longa é apenas uma colagem de cenas apressadas, ignorando arcos narrativos – originalmente trabalhados ao longo de capítulos inteiros – para adequar-se a um longa-metragem, em uma montagem desastrosa.

Nisso, um dos pilares mais importantes da história, a relação de irmandade/rivalidade entre Moisés e Ramsés (Sérgio Marone) passa em brancas nuvens, sem peso algum. O relacionamento entre o protagonista e sua esposa, Zipora (Giselle Itié) acontece do nada, personagens somem repentinamente da narrativa, como Anrão (Paulo Gorgulho), o pai biológico de Moisés, e por aí vai. O ritmo atropelado da narrativa impossibilita uma conexão com aquela história ou com aquelas figuras além daquela que o público já possuía antes de entrar no cinema.

Também não pode ser esquecido que o processo de interpretação e composição de personagens é diferente nas duas mídias. Os atores trabalham no cinema de forma mais artesanal, estudando o ritmo de cada fala, inflexão, marcação e expressão cuidadosamente por dias (ao menos em tese). Já na novela, o ritmo de trabalho é industrial, com cada capítulo sendo gravado em um dia ou dois no máximo.

Essa diferença se faz notar na tela e é até injusto julgar um trabalho de interpretação deste modo, especialmente com personagens tão enraizados em nossa cultura e que ja foram vividos de forma icônica por intérpretes do calibre de Charlton Heston ou Yul Brynner – ressalte-se que nem mesmo o elenco fora comunicado previamente de que a novela seria transformada em um filme.

No fim das contas, é impossível para qualquer apaixonado pela sétima arte ver este “Os Dez Mandamentos” como uma empreitada cinematográfica, embora seja difícil negar que foi uma tacada de mestre do ponto de vista comercial para os produtores.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre