Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Cássia Eller (2015): um filme tão artisticamente intenso quanto a cantora

Sem medo de tocar em temas espinhosos de maneira direta, este documentário exibe a mesma intensidade da biografada e se desenrola em um ritmo comparável ao da obra da própria cantora-título.

imageO desafio do documentarista Paulo Henrique Fontenelle ao abraçar o projeto “Cássia Eller” foi bem diferente daquele enfrentado no brilhante “Loki – Arnaldo Baptista”. Se no longa sobre o líder da banda Os Mutantes ele encontrou um biografado acessível e deveras extrovertido, o seu mais recente trabalho tem como objeto de estudo uma cantora que, por mais explosiva que fosse no palco, sempre se mostrou tímida e contida na hora de falar sobre si mesma.

A imagem extra-palco que o público médio tem dela é do estereotipo da roqueira que morreu em decorrência dos próprios vícios, algo que a própria imprensa ajudou a construir quando da ocasião da morte de Eller. Paradoxalmente, isso torna o filme ainda mais importante (e atraente) para o público, que pode ter visto muito da cantora, mas conhece muito pouco da mulher, amiga, amante, esposa e mãe que existia além da artista de alma arredia.

Fontenelle monta este documentário quase como um quebra-cabeças, buscando desvendar um pouco do mistério humano por trás das explosivas performances da cantora de voz grave e marcante, capaz de transitar facilmente por tantos gêneros musicais sem perder sua identidade artística. Para isso, o cineasta lança mão não apenas de depoimentos brutalmente honestos de amigos, familiares e companheiros de trabalho de Cássia, mas também de imagens de arquivo.

Se o registro de performances e entrevistas da cantora mostram o contraste abismal entre sua postura ao cantar e ao enfrentar situações mais sociais (com algumas mais parecendo quase como sessões de tortura para Eller), os vídeos e fotos cedidos por Maria Eugênia, esposa da cantora, dotam a produção de um caráter pessoal, com a falta de grandes tratamentos nessas filmagens e fotos amadoras ressaltando sua natureza mais íntima. Além desse material audiovisual, alguns trechos de escritos de Cássia também surgem na tela, lidos por Malu Mader, e dão um maior insight na alma turbulenta e fechada da artista.

É através dessas janelas para o passado que um retrato mais tridimensional de Cássia é montado, com o diretor também fazendo um ótimo trabalho ao extrair dos entrevistados declarações sinceras e tocantes sobre Eller sem jamais tornar o conteúdo excessivamente melodramático ou piegas.

Não esperem que Fontenelle tenha dourado a pílula quanto a temas mais polêmicos por conta do envolvimento mais próximo de Maria Eugênia com a fita. Elementos como sexo, drogas e depressão são tratados com uma franqueza digna da artista. Há também um esforço sensível da produção em expor que Cássia, ao contrário do que fora propagado pela imprensa na época, não morreu em decorrência de uma overdose de drogas, mas sim de um infarto do miocárdio.

Interessante ainda ressaltar como a parte final do filme se dedica ao mais inusitado e importante legado deixado por Cássia, justamente aquele referente à disputa envolvendo a guarda seu filho, Francisco Eller, uma batalha judicial entre Eugênia e o pai de Cássia (figura ausente no restante do filme, diga-se) que é um capítulo importantíssimo na luta dos homossexuais por seus direitos civis. Ver Francisco já como um jovem adulto na tela, com trejeitos vocais e corporais tão semelhantes aos da mãe também complementa a mensagem de que a biografada não deixou para o mundo “apenas” uma obra notável.

A fita possui um ritmo extremamente ágil, semelhante ao das canções da própria biografada. Neste sentido, o diretor nos permite compreender como as contínuas experiências da cantora – seus relacionamentos, parcerias e maternidade – influenciaram direta e continuamente suas atuações e como sua persona no palco refletia seu estado emocional.

A parte visual do documentário realmente lembra uma investigação, com artigos de jornais e fotos sendo marcados e destacados. Há uma riqueza gráfica que não deixa o trabalho visualmente cansativo. Ademais, qualquer monotonia seria rapidamente cortada pelas inserções musicais de shows de Cássia e de momentos inusitados dela no palco, como sua desafiadora performance em um trio elétrico ou o abraço de fã dado em Dave Grohl durante o festival Rock in Rio.

Cássia Eller necessitava do palco para soltar a fera que existia dentro dela, exorcizando seus anjos e demônios em interpretações quase que performáticas. E Paulo Henrique Fontenelle merece os parabéns por revelar um pouco mais sobre essa brilhante artista, tornando sua obra ainda mais interessante. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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