Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 15 de setembro de 2013

La Película de Ana (2012): uma farsa com sangue latino

Usando humor e drama na medida certa, o diretor Daniel Díaz Torres e o roteirista Eduardo del Llano usam da farsa para contar uma história de lutas e problemas verdadeiros.

la-pelicula-de-anaÉ algo inerente ao povo latino fazer graça com as desgraças que lhe acometem. É um modo de lidar com tais problemas sem deixar com que estes acabem por guiar suas vidas. Naturalmente, é uma característica presente na indústria cinematográfica dos países latinos, seja na Argentina, Chile, Brasil… Cuba, obviamente, não é exceção, com a rica produção audiovisual da terra de Fidel sabendo usar muito bem a matéria-prima que o destino lhe deu.

Pois bem, em “La Película de Ana”, mais recente trabalho do experiente cineasta Daniel Díaz Torres, a falta de dinheiro e a necessidade de expressão artística de um povo humilde, combinado com a sua inerente altivez são o mote de uma divertida comédia dramática, onde os risos da plateia se combinam de maneira natural com questionamentos mais sérios.

A fita conta a história de Ana (Laura de la Uz), uma atriz sem sorte na vida. Tentando comprar uma geladeira para sua família, ela descobre que documentaristas europeus estão fazendo um filme sobre prostituição na ilha, pagando às profissionais que se dispuserem a ser entrevistadas.

Com a ajuda de uma garota de programa que acaba se tornando sua amiga (Yuliet Cruz), ela cria e dá vida a uma personagem que engana os estrangeiros. Mas o golpe dá certo demais, com os cineastas acabando por propor uma produção inteira sobre a fictícia prostituta, proposta que Ana aceita, dando início a uma série de confusões.

A primeira incumbência do script foi estabelecer Ana e é impossível não notar como ela se liga ao espírito cubano. Interpretada com segurança ímpar por Laura de la Uz, a protagonista é uma orgulhosa mulher de fibra, que se recusa a aceitar a ajuda de figuras de fora, especialmente considerando um passado de dor envolvendo tais figuras.

Jamais perdendo o senso de humor, Ana conta com seu talento – e sim, alguma malandragem – para prover por sua família, por meio de uma exagerada e espalhafatosa figura que funciona, alternativamente, como espelho e caricatura de suas criadoras. Os personagens que gravitam ao redor da protagonista também possuem seus anseios particulares. Seu marido, vivido por Tomás Cao, é um homem com sede de mostrar capacidade como diretor e enxerga no esquema armado por sua esposa uma chance de trabalho.

Já Yuliet Cruz traduz em seu semblante todo o sofrimento de uma mulher que passou por experiências tortuosas em sua vida, mas nem por isso se deixou quebrar. Quando ela “assume” a câmera, experimenta a oportunidade de transformar seu pesado mundo em arte, o que traz uma melancólica luz aos ambientes decadentes noturnos que ela tão bem conhece e que são vistos com tanta luxúria por efêmeros turistas.

Por mais que saibamos que essas figuras estão agindo de maneira errada, compreendemos os seus motivos e simpatizamos com elas, até porque as suas “vítimas”, os documentaristas europeus, são retratadas como homens que desejam tão somente explorar o sofrimento da prostituta inventada por Ana, não mudando muito o fato de que um dos estrangeiros se apaixone por essa mulher inexistente, um sentimento que não o impede de continuar a explorar o “passado” dela.

O universo onde a história está inserida revela-se como um personagem particular da narrativa, com a câmera de Daniel Díaz Torres explorando cada milímetro das construções charmosas e, ao mesmo tempo, mal conservadas, afastando até mesmo qualquer possibilidade de glamour nas produções de aventura mambembes nas quais Ana trabalha, o que ressalta os motivos pelos quais ela aceita o seu “novo papel”. A fotografia, em tons quentes, também combina com o espírito local encarnado na apaixonante protagonista, assumindo até mesmo uma força diferente (mais clara e artificial) toda vez que os cineastas estrangeiros surgem em cena.

A despeito das risadas que surgem com os verdadeiros malabarismos que Ana é obrigada a fazer para sustentar sua farsa, o que marca no filme é realmente a forma guerreira com a qual ela vive a vida. Mesmo que a produção se prejudique ao não trazer um desfecho à altura da jornada, esta permanece.

Esse filme fez parte da programação do 23º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema, em setembro de 2013.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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