Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Liv & Ingmar – Uma História de Amor (2012): amor real que resistiu ao tempo

Belo documentário expõe a profunda relação entre o cineasta sueco Ingmar Bergman e sua musa e amada Liv Ullmann.

Nostálgico como sou, sempre me solidarizei diante das estrelas de cinema. Afinal, ter um passado de sucesso, conhecer inúmeras pessoas em anos de carreira e, com o passar do tempo, observar a morte, a distância e a idade chegando é um trabalho árduo. Ainda por cima, ter registrado para a eternidade toda essa glória só faz com que se aflore tal sentimento de que, sim, somos frutos de um passado que vai se rendendo rapidamente ao inevitável futuro.

Assim, retratar o universo que uniu o cineasta sueco Ingmar Bergman (ícone de retratos profundos da natureza e relação humanas) seria uma aposta arriscada. Porém, o desconhecido cineasta indiano Dheeraj Akolkar transformou a ideia em uma bela história de amor e decidiu contar a relação entre Bergman e sua grande musa, a atriz e diretora norueguesa Liv Ullmann. Assim, nasce “Liv & Ingmar – Uma História de Amor” que, em apenas 83 minutos, tenta esmiuçar esta intensa relação que durou quatro décadas e marcou para sempre a vida de ambos e a história do cinema.

Em 1966, Ingmar Bergman e Liv Ullmann (que já havia trabalhado em outros sete filmes pouco conhecidos do grande público), iniciou sua amizade com o já consagrado cineasta de longas como “Morangos Silvestres” e “O Sétimo Selo”. Ele, aos 46 anos e ela, aos 25, logo criaram uma relação de amizade, amor ao cinema e que não tardou a se transformar em uma grande paixão.

Eu chorava de admiração simplesmente por vê-lo”, declara Liv Ullmann sem qualquer receio em um de seus depoimentos. Hoje, aos 74 anos, Liv, cuja beleza doce e sensual de lábios carnudos do passado deu lugar a uma adorável senhora de olhos ainda profundamente azuis e uma sensibilidade intocável, narra os momentos mais marcantes de seu convívio com Bergman, considerado um dos grandes gênios do século 20. É inegável sua contribuição para o cinema por expor as ânsias da psique humana, em filmes carregados de beleza, dor e silêncios.

Juntos, desde a estreia em 1966 com “Quando Duas Mulheres Pecam”, firmaram uma parceria em outros dez filmes, como “A Paixão de Ana”, “Gritos e Sussurros”, “Cenas de um Casamento”, “Sonata de Outono” e “Saraband” que, em 2003, encerrou a parceria. Quatro anos depois, em julho de 2007, aos 89 anos, Bergman morre, deixando um legado de suma importância, que faz escola e até hoje é dissecado por inúmeros estudiosos por conta da profundidade de suas temáticas.

Narrado pela própria Liv Ullmann em seus depoimentos, “Liv & Ingmar – Uma História de Amor” pontua o convívio dos dois, desde o início, desenrolando-se como uma relação profissional e desembocando no romance, que durou cinco anos (1966 a 1971). Porém, mesmo com o fim da relação, ambos continuaram trabalhando juntos (com sete filmes realizados após o término do casamento) e uma relação de amizade emocionante que jamais poderia ser desfeita.

Dividido em curtos capítulos (Amor, Solidão, Raiva, Dor, Saudade e Amizade), o documentário é entremeado por cenas dos próprios filmes que fizeram juntos, com uma intertextualidade impecável. Unidos pelo cinema, podemos ver transbordar nas telas os diálogos do Bergman roteirista na boca de seus personagens, revelando nas entrelinhas o sabor agridoce desta relação com Liv, que complementam ainda mais a narrativa da história dos dois. Isso sem contar a curiosa nostalgia de cenas de bastidores, fotos e cartas que enviou à amada e amiga.

Mesmo para quem não conhece a fundo a relação, o longa já anuncia em seu prólogo uma sinceridade e intensidade tocantes, bem ao estilo do mundo mágico criado por Bergman em suas películas. Na costa da Noruega, a lendária atriz revisita os paradisíacos lugares que fizeram a história de ambos, com uma fotografia tão impecável que chega a dar contornos oníricos a tais locais. Carregado de mistério, silêncios e uma trilha intimista (todos elementos de Bergman), “Liv & Ingmar – Uma História de Amor” é feito para emocionar. E consegue, com os louros de não ofender o espectador pelo choro fácil.

Revivendo a juventude, Liv relembra amigos que já se foram, bem como “o homem que mudou sua vida”. Assim, entramos no universo de uma época que vemos apenas nos longas: seja nos flagras de bastidores dos cinegrafistas, seja nos depoimentos precisos da atriz que pontua, além de fatos, sensações e momentos a dois inéditos para o grande público. Descobrimos, então, um Ingmar Bergman profundamente romântico, mas sempre com uma forte carga de melancolia: “isso que sinto é um pouco como o inferno; quase romântico”, diz uma de suas cartas endereçadas a Liv.

Desta paixão avassaladora (ambos já eram casados e causaram furor na sociedade quando Liv engravidou do cineasta), nasceu a escritora e jornalista Linn Ullmann. Liv, ainda, declara o temperamento inseguro e possessivo de Bergman, que colocou uma grande pedra na relação dos dois quando amantes. Assim, sem “acabar” e sim “durando o tempo que tinha que durar”, somos apresentados à relação de dois seres humanos carentes de formas díspares, lidando com um sentimento que nasceu da própria solidão que ambos sofriam.

E diante de uma conexão espiritual incontrolável, “Liv & Ingmar – Uma História de Amor” vai, entre constantes fade in e fade out, desvendando a intimidade dessas declarações por meio de fotografias, vídeos, cartas e lembranças com um ritmo lento e sempre cadente, mas que jamais se perde. Expondo todas as amarguras de conviver com um gênio (do universo próprio e mergulho em seu trabalho que lhe ausentava por diversos momentos à violência psicológica), Liv Ullmann jamais perde o bom humor. Da risada alta e espontânea, o documentário é um retrato poético de uma história real (tal qual, guardadas as devidas diferenças e proporções, pudemos acompanhar no documentário “José e Pilar”, sobre a relação entre o finado escritor português José Saramago e sua esposa Pilar Del Río).

Tal relação de Liv e Bergman se refletia nas atitudes dele diante da parceira em seus filmes, inclusive, na própria atuação de Liv que, já infeliz e com raiva, transmitia para suas personagens seu estado de espírito. Porém, a atriz, que o conhecia tão profundamente, jamais deixou que o temperamento por ora obscuro de Bergman influenciasse, além do permitido, na relação dos dois. Afinal, como o cineasta insistia em dizer, “estávamos dolorosamente conectados”. E, quase 50 anos depois do primeiro encontro, tal ligação parece ter somente se fortificado com o passar dos anos. Imperdível.

Léo Freitas
@LeoGFreitas

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